sábado, 25 de outubro de 2008

LINDEMBERG JOGOU PARA A TORCIDA

JORGE FORBES ESPECIAL PARA A FOLHA

São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 2008

NADA MAIS SEGURO que prever o passado, não há erro. O Brasil de tantos técnicos de futebol quantos torcedores, revelou-se esses dias com igual número de técnicos de segurança, de paixão e de loucura. O caso Eloá exige. Parece ser insuportável simplesmente não entender, enfrentar o impacto não só da violência mas também o da surpresa e da estranheza. Podemos julgar uma ação por seus princípios, ou por suas conseqüências. No caso, frente à morte, o que importa é a conseqüência, mais que os princípios: Eloá morreu, logo, houve um erro. O fato de sabermos que houve um erro quer dizer que necessariamente ele poderia ter sido evitado? É o que gostaríamos que fosse, mas a resposta é não; há sempre um imponderável, podemos melhorar os acertos, mas não garanti-los. Isso posto, vamos lá. A mídia indaga se a mídia errou. Boa pergunta. Dizia o filósofo Gaston Bachelard que aquele que pergunta sabe a resposta. Vamos refletir pelo mais óbvio: se você quiser mudar a atitude de alguém, convencê-lo do seu erro, possibilitar uma revisão de suas certezas, você vai marcar um encontro em um barzinho, em uma mesa de canto, ou no palco do Teatro Municipal, em dia de platéia lotada? Claro, no barzinho. Ali, você poderá ouvir à exaustão o seu interlocutor, deslocar seus pontos de apoio, possibilitar linhas de escape, sem ninguém ter que honrar a palavra dada, a sua opinião, o seu amor, o seu ódio etc. Na intimidade é mais fácil sermos incoerentes, duvidarmos, revermos. Agora, se você resolve convocar uma grande platéia, muito maior que a de um teatro, aí as proporções são outras, o jogo é outro: acabou a conversa, começou a legitimação, o popularmente dito: jogo para a torcida. A patologia do amor pode fazer que alguém, um jovem tendo perdido a sua coisa, o seu objeto, a sua mulher, e queira consagrar a presença perdida. Ele entendeu mal a lição do Romeu e da Julieta, e para expressar o seu amor doente, se ele não pode casar, para inventar a vida, que seja a morte que lhe invente a eternidade; sim, ele pode assim querer. Ele pedia insistentemente algo como: "Invadam logo esse bagulho aqui, vamos acabar logo com isso, eu insisto, eu insisto...". E o palco foi feito com muito mais câmaras de fotografia e de televisão, que em qualquer casamento de filho de político com de banqueiro. O que poderíamos esperar do policial negociador que tentou parar esse casamento trágico? Muito pouco, nada, a conversa não era com ele, era com a tela, com o estar bonito na fotografia, com a consagração do crime. O tempora, o mores! ["Ó tempos, ó costumes", em tradução livre]. E nessa dança macabra, o passo final, a imprescindível prisão do falso amante -pois entender não é desculpar- é dado pelos acordes da nossa música social. Caímos na armadilha: temos que prender quem quer ser preso.
JORGE FORBES é psicanalista, preside o Instituto da Psicanálise Lacaniana e é membro da Associação Mundial de Psicanálise

Marta com McCain

por Contardo Calligaris
16 Outubro 2008


McCain e Marta, para desacreditar o candidato oposto, contam com nossos preconceitosAS CAMPANHAS ELEITORAIS são facilmente sórdidas.Claro, os candidatos mentem inchando seus feitos, omitindo suas inércias, atribuindo-se realizações que são de outros ou dos predecessores. Mas isso dá para agüentar, é quase normal.Muito mais humilhante (para a gente) é quando as campanhas fazem apelo ao que há de pior em nós, ou seja, quando, na tentativa de desacreditar o candidato adversário, elas apostam em nossos preconceitos. Nesse caso, as campanhas supõem (com razão) que estejamos sempre prontos a transformar tal candidato em cabide de sentimentos e desejos que são nossos, mas dos quais nos envergonhamos.Funciona assim. Digamos que eu sou ávido e venal e não gosto disso; prefiro me imaginar desinteressado e generoso. Como tirar vantagem dessa minha contradição?O jeito ideal de me manipular não é denunciar um candidato porque ele se mostrou, em tal ocasião, interesseiro e cobiçoso. O método direto é o menos eficiente: ele permite, afinal, que a gente se interesse pelos fatos, verifique, concorde ou discorde.A melhor maneira de manipular passa por dois tempos: 1) evocar um fato do qual são silenciadas a causa e as circunstâncias, 2) levantar uma pergunta quanto mais genérica possível, de modo que o ouvinte projete suas próprias tendências envergonhadas no candidato atacado e ele, o ouvinte, seja, assim, o único responsável pela calúnia.Um exemplo? 1) Os judeus são quase todos comerciantes, 2) pergunta genérica: o que eles "realmente" querem da gente? A propaganda anti-semita nazista acrescentava, para quem fosse burro mesmo, desenhos de garras aduncas surgindo da sarjeta, mas não era necessário. Detalhe silenciado: os judeus eram comerciantes porque, por exemplo, não lhes era permitido comprar terra ou exercer profissão liberal que atendesse à população em geral.Na fase dois da manipulação (a pergunta), é crucial que algo nos sugira que houve a intenção de esconder uma falha, que deve ser revelada. Em "O que eles "realmente" querem da gente?", o advérbio instala em nós a suspeita de que estávamos sendo enganados. Agora, o véu será levantado. O problema é que, como nada foi dito explicitamente, será levantado não por uma denúncia, mas pela atribuição ao acusado de qualquer uma das tendências que mais receamos em nós mesmos.Esse método básico de manipulação aparece de maneira idêntica na última fase da campanha presidencial dos EUA e no início do segundo turno das eleições para a Prefeitura de São Paulo.A campanha de John McCain 1) encarregou a candidata a vice de evocar fatos "sugestivos" sem explicitar as circunstâncias (por exemplo, Barack Obama encontrou o ex-ativista e terrorista William Ayers -de fato, Ayers era tudo isso nos anos 1960, mas hoje é professor de pedagogia na Universidade de Chicago e se ocupa de programas sociais educativos); 2) logo, perguntou: "Quem é o "verdadeiro" Obama?".A campanha de Marta Suplicy apenas inverteu a ordem; criou um comercial que começa com "Você sabe "mesmo" quem é o Kassab?" e termina com a pergunta: "Sabe se ele é casado? Tem filhos?".É óbvio que as prisões do país estão cheias de indivíduos casados e com filhos (o estado civil não é garantia de nada). A pergunta só serve para que o eleitor médio pense em Kassab como diferente dele: "Não é casado? Então, tem uma vida diferente da minha". Essa pensada dá força à interrogação inicial: "Você sabe "mesmo" quem é o Kassab?". Não, não sei, visto que ele é diferente de mim. O que ele está me escondendo?A Folha de 13 de outubro relata o seguinte: a reportagem "perguntou a Marta se a propaganda não era contraditória com a sua biografia" (Marta Suplicy foi uma campeã do direito à privacidade). E Marta respondeu: "O que você está insinuando?". Mais uma manipulação: "Ninguém disse nada, o comercial só pergunta, é você que procura pêlo no ovo".As perguntas das campanhas de Marta e de McCain talvez funcionem com eleitores desavisados: eles imaginarão que Kassab e Obama sejam os perigosos porta-vozes de tendências obscuras que eles (os ditos eleitores) receiam, antes de mais nada, dentro deles mesmos.Mas, para a maioria, menos desavisada do que parece, essas perguntas assinalam que as campanhas de Marta e de McCain estão dispostas a uma boa dose de indignidade moral para se manterem em vida.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

INSTITUTO MÜLLER-GRANZOTTO

Oficinas de discussão e trabalho
Não obstante o termo ficar cunhado pelo emprego psicológico estabelecido pela Gestalt Theory, gestalt é um significante muito mais amplo presente em múltiplos discursos e práticas.

TEATRO E GESTALT
Convidado: Diogo Boccardi
Data: 17 de outubro
Hora: 18:00

Próximos temas:

CINEMA E GESTALT
DANÇA E GESTALT
MÚSICA E GESTALT
ARTES PLÁSTICAS E GESTALT
ARTETERAPIA E GESTALT
LITERATURA E GESTALT
FILOSOFIA E GESTALT
ESPORTE E GESTALT
YOGA E GESTALT
FOTOGRAFIA E GESTALT
PSICANÁLISE E GESTALT
HUMANISMO E GESTALT

Localização
Alameda Governador Heriberto Hülse, 98Centro - CEP 88.015-170 - Florianópolis - SC Fone: (48) 3322 2122 Fax: (48) 3207 1817E-mail:
instituto@mullergranzotto.com.br

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A alma não existe

Entrevista Istoé 20/10/2004 por Darlene Menconi
*Marcelo Gleiser
Certa vez, a escritora Raquel de Queirós justificou seu ateísmo dizendo que a culpa não era sua. “Deus me deu pouca fé”, explicou. Do mesmo mal padece o físico e escritor Marcelo Gleiser, que, apesar de jovem, é uma das principais vozes da divulgação científica. Tanto que recebeu, das mãos do ex-presidente Bill Clinton, um prêmio por sua dedicação ao estudo e à pesquisa em cosmologia. De origem judaica, Gleiser frequentou a sinagoga quando pequeno, mas não achou inspiração nas tábuas divinas.

Aos 45 anos, e há 22 anos vivendo nos EUA, ele não perdeu o sotaque carioca. Muito menos o prazer em buscar respostas para os mistérios do universo, da vida e da mente. Conforto e paz de espírito ele afirma encontrar na natureza, no amor e nos filhos, de 15, 11 e oito anos. Eleitor de John Kerry, a quem doou dinheiro para a campanha, Gleiser não aposentou os planos de retornar ao Brasil. Professor de física e filosofia natural de uma das mais conceituadas faculdades americanas, a Dartmouth, em New Hampshire, ele ganhou dois prêmios Jabuti por seus livros sobre o universo e o embate entre ciência e religião, um de seus assuntos preferidos. Gleiser acaba de escrever, em inglês, um romance sobre o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), que conviveu com o italiano Galileu Galilei, condenado pela Igreja por defender que o Sol, e não a Terra, era o centro do universo. “Sou profundamente místico”, diz Gleiser, cujo hobby é a pesca com isca artificial (fly fishing). “É uma atividade zen, em que é preciso estar em contato com a água, o céu, o peixe e o sol”, explica o físico, que falou a ISTOÉ antes de embarcar para uma série de palestras no Brasil.

ISTOÉ – Por pressão religiosa, algumas escolas do Rio de Janeiro não ensinam a teoria da evolução, na qual humanos descendem de macacos. Qual sua opinião sobre isso?
Marcelo Gleiser – É um absurdo. Em Kansas (EUA), houve muito debate sobre isso e se decidiu que a teoria da evolução seria ensinada junto com o texto bíblico, como uma alternativa. Depois de dois anos, eles reverteram a decisão e voltaram a ensinar a teoria da evolução como a única válida para descrever como os animais evoluíram na Terra. O Estado de Ohio vive discussão parecida. Não se pode apresentar religião como a descrição científica do mundo. Isso é o que se fazia há 500 anos. É justamente contra esse dogmatismo da Igreja que Galileu lutou. É perigoso usar como científico qualquer texto religioso criado para servir de parâmetro ético e moral das pessoas.
ISTOÉ – Qual a linha que divide ciência e religião?
Gleiser – Elas são complementares. A ciência se propõe a descrever o mundo natural, com a maior precisão possível. Não se propõe a ser bengala espiritual. Se alguém querido morre, ela não tem nada a dizer. Nisso, a religião é imbatível. Essa é a razão pela qual, mesmo numa sociedade tão tecnológica e científica, ainda existe tanta gente religiosa. O ser humano é um ser espiritual. As pessoas vão em massa às igrejas, sinagogas e mesquitas procurar consolo, espírito de comunidade e fraternização. Já a ciência é uma narrativa que evolui. Sua função é descrever o mundo e explicar nosso papel dentro dele.
ISTOÉ – Sendo assim, sempre haverá meias-verdades?
Gleiser – O universo em que um cara do século XVI vivia, quando a Terra era o centro de tudo, é diferente do século XVIII, quando o Sol já era o centro, e é diferente do nosso universo, que não tem centro e se expande em todas as direções. Não há verdades finais em ciência. O mundo está sempre se transformando. Acho possível encontrar espiritualidade na descrição científica do mundo. Sou do time do (Albert) Einstein, que dizia que esse questionamento sobre o desconhecido é essencialmente espiritual. Não significa acreditar numa entidade sobrenatural controlando o mundo. Ou na existência da alma e de outras coisas além das leis da natureza.
ISTOÉ – Na sua opinião, não existe alma?
Gleiser – Eu adoraria ter alma e, quando meu corpo pifasse, poder renascer em outro corpo. Histórias de espiritismo, de vida após a morte e as várias versões das religiões para isso são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema mais fundamental, que é a mortalidade. Vários amigos espíritas dizem que a maneira científica de pensar o mundo é apenas uma. Existem outras. Usar a ciência para justificar a existência ou não da alma nunca vai dar certo. No século XVII, o que se chamava de eu, a pessoa, vinha da alma. Quando a pessoa morria, a alma ia embora e o corpo ficava. Toda a noção de ser humano era relacionada à existência ou não dessa faísca divina. Aristóteles achava que a alma ficava no coração, assim como os egípcios. Não se sabia que o centro era na cabeça. Hoje, a gente sabe que não tem alma e que o cérebro é um organismo extremamente complexo.
ISTOÉ – Como se pode ter conforto diante dessa visão?
Gleiser – Ninguém aceita a mortalidade. O que a gente faz é se contentar com explicações e se encantar mais ou menos com as possibilidades sobrenaturais. Tem aqueles que se encantam muito e vão a terreiros de macumba, recebem espírito, etc. E tem os que se encantam menos, como eu, que não acreditam nesse mundo paralelo. A questão entre ciência e religião é parte fundamental do meu próximo livro, um romance histórico baseado na vida do astrônomo alemão Johannes Kepler, que viveu no início do século XVII. Ele é famoso por descobrir que as órbitas planetárias são elípticas e não circulares. Sua vida é um dos episódios mais fascinantes da ciência. Ele tinha um pé na Idade Média e seus misticismos, e outro na modernidade e na revolução científica. O livro conta a história de sua vida, em uma Europa imersa no caos, dividida por guerras religiosas entre católicos e protestantes, bruxas sendo torturadas e queimadas, Galileu julgado pela Inquisição na Itália. De muitos modos essa realidade retrata os dias atuais, com disputas religiosas, intolerância e iniquidade social.
"Histórias de espiritismo, de vida após a morte são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema fundamental, que é a mortalidade"
ISTOÉ – Como é possível comparar os dias atuais com a Idade Média, quando as disputas acabavam na fogueira?
Gleiser – Por volta de 1600, a Europa estava dividida entre protestantes e católicos. Entre os protestantes, brigavam luteranos e calvinistas. As pessoas morriam feito moscas. No século XVII, a Igreja Católica tinha muito poder na Itália e algum na Alemanha e na Boêmia, parte do que é hoje a República Tcheca. Quem tinha terras, dinheiro e poder eram barões e condes protestantes. Havia uma disputa de fundo religioso que na verdade era pelo controle das terras. Agora é o cristianismo contra o islamismo. Temos os EUA como potência imperialista tentando impor seus valores morais. Parece uma cruzada ideológica, mas é uma tentativa de colocar pé firme no Oriente Médio, não só em Israel, mas numa potência como o Iraque, onde está o petróleo. Por trás dos grandes conflitos religiosos há sempre o engenho político e econômico.
ISTOÉ – Qual o efeito da intolerância no pensamento científico?
Gleiser – Um exemplo importante é o que chamo das “três origens”, do universo, da vida e da mente. Todas as religiões, de uma maneira ou de outra, têm respostas para essas perguntas. A mais conhecida, que vem do Velho Testamento, é a criação do mundo e a idéia da alma, que dá consistência ao espírito. Diferentes religiões têm diferentes explicações. Todas, por natureza, são inflexíveis. Não se pode questionar a palavra divina. Isso é o dogma da religião. A informação vem de cima para baixo, não tem conversa. Os padres, sacerdotes, rabinos e monges são intérpretes da verdade divina. Na ciência, a estrutura é horizontal, o conhecimento pode ser descoberto por qualquer pessoa e, em princípio, há um fórum para discutir idéias. Quando um cientista tem uma idéia sobre a origem do mundo, ele ou ela escreve artigos e vai a conferências nas quais busca provar sua veracidade. Se for provada errada, joga-se a idéia no lixo. Existe uma evolução construtiva do saber.
ISTOÉ – Seria possível explicar fatos religiosos como o dilúvio e a Arca de Noé?
Gleiser – Acho perfeitamente razoável tentar justificar fatos bíblicos usando a pesquisa científica. Afinal de contas, os livros da Bíblia foram escritos por pessoas que relatavam uma história, carregada de simbolismo. O grande perigo é usar textos religiosos como científicos. Se alguém fala que está escrito na Bíblia que o mundo tem 6.775 anos porque ali foi a gênese e Abraão foi o primeiro patriarca, isso é um erro, obscurantismo. A Terra tem em torno de 4,6 bilhões de anos. Não há dúvida disso.
ISTOÉ – Mais de 90% do universo é composto de uma força misteriosa. Será que Shakespeare estava certo ao dizer que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”?
Gleiser – A chamada energia escura passou a dominar o universo há mais ou menos cinco bilhões de anos. Ela não tem um papel na origem do cosmo. Essa descoberta foi em 1998 e é um ótimo exemplo de como as coisas mudam. Foi uma surpresa para todo mundo. Não sabemos o que é essa tal energia escura, nem como será o futuro do universo. O paradoxo é que a natureza é muito mais esperta do que nós. Quanto mais se sabe, mais há o que descobrir. Outras perguntas surgem, e é isso o que torna a ciência emocionante. Não há uma reta final, só a contínua busca pelo conhecimento.
.ISTOÉ – Só que a ciência também virou um ramo de negócios, com lucratividade e retorno financeiro.
Gleiser – É importante separar ciência das aplicações tecnológicas da ciência. A nanotecnologia, a biotecnologia, a microeletrônica, o GPS, os celulares cada vez mais incríveis, a internet, tudo isso é aplicação da ciência para o mercado econômico. O mecanismo que gera esse tipo de aplicação não tem nada a ver com a exploração da natureza. São universos diferentes. Essa apropriação da tecnologia pelo mercado é um lado da ciência, e é filosófica e culturalmente menos interessante do que o lado da ciência que gera conhecimento sobre o mundo e as pessoas. Quando falo do romantismo do cientista, falo do lado explorador, de pessoas que se confrontam diariamente com o não-saber. Somos os descobridores da natureza, os que vão ampliar as fronteiras do mundo. E olha só quantas fronteiras têm sido descobertas através de telescópios, microscópios, mundos antes invisíveis. Há uma beleza, uma simplicidade e mesmo uma elegância com que a física descreve a natureza.
ISTOÉ – E por que é tão difícil entender o que dizem os cientistas?
Gleiser – O mesmo princípio usado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias. E também para explicar como uma patinadora dá piruetas no gelo. Ela começa com os braços estirados, traz os braços para o peito e gira mais rápido. É o mesmo princípio que explica como se gira a massa da pizza no dedo para ela ficar achatada nos pólos e se alongar no equador, e é assim que nasceu o sistema solar e as galáxias. Não tem poesia e elegância quando se consegue descrever tantas coisas diferentes com as mesmas idéias? O que falta no ensino da física é mostrar sua relação com o mundo em que se vive. Quando se escreve uma fórmula no quadro-negro, ninguém dá bola. Informar o público é fundamental para nossa sobrevivência em um contexto global cada vez mais dependente da ciência e suas aplicações.
"O mesmo princípiousado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias e como a patinadora dá piruetas no gelo"
ISTOÉ – Um dia vamos habitar outros planetas, como Marte?
Gleiser – Não há outra saída. A Terra tem os dias contados. Vivemos num sistema que tem uma estrela, o Sol. Como toda estrela do universo, um dia ela vai pifar e se tornar uma gigante vermelha. Vai inchar, engolfar Mercúrio, Vênus e chegar pertinho da Terra. Isso ainda demora bilhões de anos, mas em centenas de milhões de anos, o Sol vai tornar impossível a vida na Terra. A verdade é que, se a gente ainda existir até lá, de forma a preservar o que somos, temos que colonizar o sistema solar e a galáxia. O destino do ser humano é se espalhar pelo universo. Muito possivelmente, há outras regiões, outros universos, separados do nosso.
ISTOÉ – Existe vida em outros planetas?
Gleiser – São centenas de bilhões de galáxias como a Via Láctea. Pense no universo como uma bolha de 13,8 bilhões de anos-luz. Não sabemos o que existe fora da bolha. Não significa que não existam outras galáxias, estrelas e sistemas solares onde não enxergamos. Em cosmologia, se diz que vivemos num multiverso. Nossa bolha é só uma de infinitas outras. Parece até um conto do Jorge Luis Borges (escritor argentino), são milhões de mundos pululando por aí.
*Ganhador de dois Jabuti, físico diz que a ciência está em constante mutação e que é um erro buscar na religião as respostas para o mundo
• Mestre em física, doutor pelo King’s College da Inglaterra
• Professor catedrático da Faculdade Dartmouth, em New Hampshire (EUA)
• Prêmio Jabuti de 1998 e 2002 pelos livros A dança do universo e O fim da Terra e do céu
• Bolsista da NSF, fundação de ciência americana, e da Nasa, agência espacial americana
• Idade: 45 anos

Pensamentos Eleitorais

por Contardo Calligaris
09 Outubro 2008

Temos uma relação doente com a verdade: oscilamos entre o ceticismo e a paixão

NA NOITE das eleições, os comitês dos vitoriosos oferecem festas. Por sorte dos próprios candidatos, essas festas acontecem depois de a gente ter votado. Por que "por sorte"? Porque deve haver vários eleitores que, como eu, à vista do triunfalismo dos partidários exultantes, sentem vontade de votar por outro candidato.Não ficou claro? Explico. Na noite de domingo passado, na primeira festa que a TV nos mostrou, eis que um grupo de mulheres possuídas pulavam e gritavam "Ganhou! Ganhou! Ganhou!". Agüentei. Logo, alguém enfiou a cara na câmara e afirmou: "Deus está conosco". Por que não diretamente em alemão, "Gott mit uns", como estava escrito na fivela dos cintos dos soldados da Wehrmacht na Segunda Guerra Mundial? Deve ser um ranço religioso, mas, para mim, a frase "legal" é: "Que Deus esteja com vocês".Enfim, haja paciência. Mudei de canal. Mas o episódio me ajudou a pensar. Em geral prefiro as pessoas que têm o bom gosto de serem humildes e pensativas sobretudo na vitória. Mas não é só isso.Parece que, cada vez mais, o que faz a diferença entre os candidatos não são suas propostas (freqüentemente próximas), mas sua figura e seu "caráter". Pois bem, se esse for o critério, o melhor candidato, para mim, será aquele que NÃO parece estar absolutamente convencido de ser a melhor escolha. Inversamente, o pior é aquele que se acha insubstituível, superior aos outros. Não devo ser o único que pensa assim.No primeiro debate entre os candidatos nas eleições presidenciais dos EUA, quando John McCain reiterou que ele é "o cara" (aquele que tem caráter, fibra e experiência para ser presidente), logo naquela altura, despencou unanimemente a aprovação dos espectadores reunidos num grupo de foco pela CNN. Ou seja, ninguém agüenta.Na mesma linha, entendo que, nas eleições municipais brasileiras, os candidatos a vereador disponham de um fragmento muito curto do horário eleitoral. Mas o resultado é obsceno: a maioria só consegue lançar um apelo abstrato e patético -"Votem em mim, gostem de mim, confiem em mim" (mas por quê?)- e exibir o traço grotesco que os tornaria únicos, extraordinários (a barba de Bin Laden ou de Enéas, o cabelo máquina dois de Obama etc.).Talvez essas vinhetas sejam a parte mais engraçada do horário eleitoral, mas é um riso que pode tornar risível o processo inteiro.Voltemos ao meu candidato ideal, aquele que não estaria certo de ser o melhor nem o único. Alguém perguntará: então, por que razão ele se candidataria?Essa questão surge porque temos uma relação doente com a verdade: oscilamos entre um ceticismo quase cínico (cada um tem a sua verdade, portanto todas as verdades se valem) e uma paixão missionária (nós temos a única verdade; os outros, que pensam diferente, devem ser corrigidos, para o próprio bem deles). Ou seja, a verdade é uma só (a nossa) ou, então, não tem verdade alguma.É mais uma versão da patologia narcisista básica: eu sou o único, o eleito, ou, então, não sou ninguém. Assim como é difícil conseguir viver sendo "apenas" um entre outros, também é difícil considerar que a nossa verdade é uma entre outras, mas não por isso deixa de ser uma verdade. O diálogo, aliás, não é possível nem entre os cínicos nem entre os enfatuados -só é possível entre os que conseguem acreditar numa verdade que conviva com outras. Exemplo.Nos EUA, desde 1973, o aborto, como decisão autônoma da mulher, é permitido sob a condição de que o feto não seja viável fora do corpo da mãe. Entende-se: o feto viável fora do ventre materno é um cidadão, e o aborto passa a ser um assassinato.Ora, consideremos os candidatos à vice-presidência dos EUA. Tanto Sarah Palin (republicana) quanto Joe Biden (democrata) são cristãos. Para ambos, a vida começa no momento da concepção; para ambos, o embrião fecundado já é um sujeito e tem alma.Palin afirma que ela tentaria reverter a lei atual, autorizando os Estados a proibirem o aborto. Biden afirma que, apesar de sua convicção, a lei atual lhe parece ser um compromisso aceitável, numa sociedade em que convivem pessoas que pensam como ele e outras que pensam diferente. Moral da história, graças a Biden. Acreditar na verdade do que a gente pensa não implica querer impor nossas idéias a todos com ze- lo missionário. E aceitar que haja mais de uma verdade não significa ser cínico.

Vacinas contra as drogas

por Contardo Calligaris
30 Novembro 2000


Os consumidores assíduos de cocaína, heroína ou maconha que querem se livrar de sua dependência encontram hoje recursos químicos de duas classes. Existem produtos que atenuam a sensação de falta. E outros que podem substituir cada uma das drogas, oferecendo uma alternativa consolatória e -espera-se- menos nociva.Em todo caso, é fundamental que o sujeito mantenha firme a determinação de parar. Para ajudá-lo nisso, há programas de desintoxicação, grupos de interajuda etc.Ora, um artigo publicado na "New Scientist" de 10/6/2000 traz uma novidade: é possível que verdadeiras vacinas contra as drogas estejam prontas nos próximos três anos. O princípio é o seguinte: moléculas similares à molécula de uma droga são associadas a uma proteína que as torna detectáveis pelo sistema imunológico. Elas podem, assim, servir de isca para estimular a produção de anticorpos específicos.Um preparado dessas moléculas é injetado no sujeito. A partir daí, as moléculas de droga que entrarem no corpo serão "reconhecidas" pelos anticorpos e aniquiladas, antes que a droga se torne ativa no organismo. Macacos, ratos e humanos, uma vez vacinados, por mais que cheirem ou injetem, não conseguem nenhum barato. O sujeito pára de se drogar, porque a droga não faz efeito. A idéia surgiu nos anos 70, com uma vacina contra a heroína, que funcionava (em macacos), mas oferecia proteção por um tempo muito curto. Nos anos 90, chegou uma vacina contra a cocaína, que foi mais bem-sucedida e está sendo testada em humanos. Há pesquisas em curso para quase todas as drogas.À primeira vista, o projeto inspira simpatia. As vacinas podem ajudar os sujeitos que se desintoxicam e prevenir as recaídas. Quem sabe, elas ajudem a sarar as cracolândias das metrópoles mundiais.Mas a idéia das vacinas é também um exemplo da extraordinária desistência moral de nossa cultura. Logo nós, modernos, inventores da liberdade individual, parecemos confiar mais numa modificação material de nossos corpos do que em nossas livres escolhas e decisões. Pois se trata disso: alguém se injeta uma vacina que torna a droga inoperante para que a tarefa de resistir aos charmes da droga seja delegada ao corpo. O sujeito pode afrouxar sua determinação, pois os anticorpos se manterão intransigentes.Por esse caminho, imaginemos que alguém, por razões morais, decida praticar o celibato e se manter puro: em vez de disciplinar seus desejos incômodos, ele deveria se capar. Se um dia chegássemos a identificar genes ou zonas cerebrais responsáveis por comportamentos que preferiríamos evitar (violência, agressividade, mentira etc.), por que não pouparíamos nossos esforços éticos, recorrendo diretamente a alterações corporais?Alguém achará que estou exagerando: afinal, quem decide tomar a vacina é o sujeito que quer ser desintoxicado. Livremente, ele resolveria nunca mais ser exposto à tentação da droga.Certo. Mas aposto que, se dispuséssemos de vacinas contra as drogas, esqueceríamos de pedir o consentimento dos vacinados. Como evitar que um governo decida imunizar toda a população "de risco" (a começar pela carcerária)? Como evitar que os pais vacinem todos os seus rebentos? Qualquer profissional ou pai que conheça a inércia agressiva de um maconheiro adolescente concordaria com essa decisão preventiva. Em pouco tempo, a vacina contra as drogas seria obrigatória e universal.Se a imunização valesse para a vida inteira (assim como é esperado), lamentaríamos um sério empobrecimento da experiência humana. Adeus, Thomas De Quincy, Charles Baudelaire, Allen Ginsberg e outros drogados. Mas isso é o menos grave.Eis o pior: quando um caminho importante é impedido, os humanos sempre encontram outros jeitos e inventam desvios. Sobretudo comportamentos que insistem e se impõem (aparentemente) contra nossa vontade -como é o caso da toxicomania- não são escolhas de vida acidentais.Eles são peças relevantes da engrenagem da personalidade. Por isso não podem ser retirados como se fossem espinhos no pé. Torná-los fisicamente impossíveis significa obrigar o sujeito a encontrar outros comportamentos que tenham uma função análoga na engrenagem. Ou seja, quem renunciar a se drogar apenas porque seus anticorpos impedem a ação da droga achará outros jeitos de gritar sua rebeldia ou sua tristeza.Em suma, os anticorpos policiarão, talvez, um dia, o uso das drogas. Evitaremos, assim, esforços morais excessivos, e nossas vidas serão, desse ponto de vista, normalizadas. Mas não é o caso de se preocupar em demasia com a chegada de um mundo uniforme e aborrecido.De fato, as vacinas antidrogas (e remédios análogos) prometem um mundo explosivo e incerto. Eis por que: algum mal-estar psíquico e social mantém as drogas bem perto do centro da experiência contemporânea. Se formos imunizados contra as drogas, o mal-estar será silenciado sem ser ouvido. É inevitável que ele insista e volte a se dizer sob outras formas, imprevisíveis. E provavelmente com violência renovada.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008