quinta-feira, 10 de abril de 2008

o mito da caverna

O SÍMBOLO DA CAVERNA


Arquétipo do útero materno, a caverna figura nos mitos de origem, de renascimento e de iniciação de numerosos povos.
Sob a designação genérica de caverna, incluímos igualmente as grutas e os antros, se bem que não haja sinomínia perfeita entre essas palavras. Entendemos por caverna um lugar subterrâneo, ou rupestre, de teto abobadado, mais ou menos afundado na terra ou na montanha e mais ou menos escuro; o antro seria uma espécie de caverna mais sombria e mais profunda, situada bem no fundo de uma anfractuosidade, sem abertura direta para a luz do dia; entretanto, excluímos o covil, guarida de animais selvagens ou de bandidos, cujo significado nada mais é do que uma forma corrupta do símbolo.
Nas tradições iniciáticas gregas, a caverna representa o mundo. A caverna pela qual Ceres descera aos Infernos, à procura de sua filha, foi chamada de mundo. (Servius, Sur lês Bucoliques, 111,105). Para Platão, esse mundo é um lugar de ignorância, de sofrimento e de punição, onde as almas humanas são encerradas e acorrentadas pelos deuses como se estivessem dentro de uma caverna. Imagina, pois, homens, diz Platão em A República (livro VII, 514, ab) ao descrever o famoso mito, que vivem numa espécie de morada subterrânea em forma de caverna que tem, ao longo de toda sua fachada, uma entrada a abrir-se amplamente para o lado da luz; no interior dessa morada esses homens estão, desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo a permanecerem sempre no mesmo lugar, a não verem o que estiver diante deles e incapazes, por outro lado, por causa da corrente que lhes sujeita a cabeça, de gira-la circularmente. Quanto à luz, a única que lhes chega é a que provém de um fogo que arde por trás deles, no alto e longe. Para Platão, esta é a situação dos homens na terra. A caverna é a imagem deste mundo. A luz indireta que ilumina suas paredes provém de um sol invisível; mas indica o caminho que a alma deve seguir a fim de encontrar o bem e a verdade: a subida para o alto e a contemplação daquilo que existe no alto representam o caminho da alma para elevar-se ao lugar inteligível. Em Platão, o simbolismo da caverna implica portanto uma significação não apenas cósmica, mas também ética ou moral. A caverna e seus espetáculos de sombras ou de fantoches representam esse mundo de aparências agitadas, do qual a alma deve sair para contemplar o verdadeiro mundo das realidades – o mundo das Idéias.
Numerosas cerimônias de iniciação começam com a passagem do postulante para dentro de uma caverna ou fossa: é a materialização do regressus ad uterum (retorno ao útero) definido por Mircea Eliade. Esse era especialmente o caso ritual de Elêusis (MAGE ,286) no qual, sendo a lógica simbólica rigorosamente descrita nos fatos, os iniciados eram acorrentados dentro da gruta; dali deviam conseguir escapar para alcançar a luz. Já nas cerimônias religiosas instituídas por Zoroastro, um antro representava o mundo (MAGE, 287): Zoroastro foi quem primeiro consagrou em homenagem a Mitra um antro natural, regado por fontes, coberto de flores e de folhagens. Esse antro representava a forma de mundo criado por Mitra... Inspirando-se nessas crenças pictóricas, e depois deles Platão, chamaram o mundo de antro e de caverna. Com efeito, em Empédocles, as forças uqe conduzem as almas dizem: Viemos para debaixo desse antro coberto por um teto (Porfírio, Do antro das Ninfas, 6-9). Plotino comenta esse simbolismo nos seguintes termos: A caverna para Platão, assim como o antro para Empédocles, significa, ao que me parece, o nosso mundo, onde a caminhada em direção à inteligência representa para a alma a libertação de seus laços e a ascenção para fora da caverna (Plotino, Enéadas, IV, 8,1) Segundo uma opinião mais mística, Dionísio é, ao mesmo tempo, o guardião do antro e aquele que liberta o rpisioneiro ao romper suas correntes: Como o iniciado é um Dionísio, na realidade é ele mesmo quem se mantém aprisionado no começo e ele mesmo quem se liberta no final; ou seja, segundo a interpretação de Platão e Pitágoras, a alma é mantida em prisão por suas paixões e liberada pelo Nous, e.e., pelo pensamento (MAGE, 290-291)
Como se vê, toda a tradição grega une estreitamente o simbolismo metafísico e o simbolismo moral: a construção de um eu harmonioso faz-se à imagem de um cosmo harmonioso.
Entretanto, em face dessa interpretação ergue-se o outro aspecto simbólico da caverna, o mais trágico dos aspectos. O antro, cavidade sombria, região subterrânea de limites invisíveis, temível abismo, que habitam e de onde surgem os monstros, é um símbolo do inconsciente e de seus perigos, muitas vezes inesperados. O antro de Trofônio, muito célebre entre os Antigos, pode efetivamente ser considerado como um dos mais perfeitos símbolos do inconsciente. Trofônio, rei de uma pequena província e ilustre arquiteto, construiu, com a ajuda de seu irmão, Agamedes, o templo de Apolo em Delfos. Depois, como o rei Hirieu os houvesse encarregado de construir um edifício para guardar seus tesouros, eles abriram uma passagem secreta a fim de roubar essas riquezas; percebendo a manobra, Hirieu armou uma armadilha e Agamedes foi apanhado. Ao não conseguir liberta-lo e não querendo ser reconhecido através dos traços fisionômicos do irmão, Trofônio cortou-lhe a cabeça no intuito de leva-la consigo. No mesmo instante, porém, foi submerso nas entranhas da terra. Anos mais tarde, a Pítia (sacerdotisa de Apolo), consultada para por fim a uma terrível seca, recomenda que se dirijam a Trofônio, cuja morada ficava dentro de um antro no fundo de um bosque. A resposta do rei-arquiteto foi favorável e, desde então, a morada do oráculo foi uma das mais freqüentadas. Mas só se podia consulta-lo depois de atravessar os mais assutadores obstáculos. Uma seqüência de vestíbulos subterrâneos e de grutas levava à entrada de uma caverna, que se abria como uma cova fria, medonha e negra. O consulente descia até ali por uma escada, que terminava numa outra cova, cuja abertura era muito estreita. O consulente introduzia primeiro os pés, depois o corpo, que passava com grande dificuldade; depois, era a queda rápida e precipitada no fundo do antro. Quando voltava, vinha com a cabeça para baixo e os pés para cima, puxado muito rapidamente no sentido inverso, com o auxílio de uma máquina invisível. Durante todo o percurso, segurava doces de mel, que o impediam de tocar na máquina e lhe permitiam acalmar as serpentes que costumavam infestar esses lugares. A permanência no antro podia durar um dia e uma noite. Os incrédulos jamais tornavam a ver a luz do dia. Os crentes às vezes ouviam o oráculo; de volta à superfície, sentavam-se num banco denominado Mnemósine (deusa da Memória) e evocavam as terríveis impressões sofridas, que os deixariam marcados pelo resto da vida. Era comum dizer-se das pessoas graves e tristes: Ela consultou o oráculo de Trofônio.
O complexo de Trofônio que matou o próprio irmão para não ser reconhecido como culpado, é o das pessoas que renegam as realidades de seu passado a fim de nelas sufocar um sentimento de culpabilidade; mas o passado, gravado no fundo de seu ser, não desaparece por isso; continua a tormenta-las sob toda espécie de metamorfose (serpentes, etc...), até o momento em que elas aceitam trazer esse passado à luz do dia, façam com que ele saia do antro e o reconheçam como algo que lhes pertence. A caverna simboliza a exploração do eu interior, e, mais particularmente, do eu primitivo, recalcado nas profundezas do inconsciente. Apesar das diferenças evidentes que os separam, pode-se estabelecer uma aproximação entre o fratricídio de Trofônio e o de Caim, ao matar Abel. A marca imemorial do assassinato habita o inconsciente e ilustra-se através da imagem de um antro.
A caverna também é considerada como um gigantesco receptáculo de energia, mas de uma energia telúrica e de modo algum celeste. Por isso ela sempre desempenhou (e ainda desempenha) um papel nas operações mágicas. Templo subterrâneo, a caverna guarda as lembranças do período glaciário, verdadeiro segundo nascimento da humanidade. É propícia às iniciações, ao sepultamento simulado, às cerimônias que circundam a imposição do ser mágico. Simboliza a vida latente que separa o nascimento obstétrico dos ritos da puberdade. Põe em comunicação o primitivo com as potências ctonianas (divindades que residem no interiro da terra) da morte e da germinação.
...
(Dicionário de Símbolos – Jean Chevalier; Alain Gheerbrant. P 213)

Nenhum comentário: