domingo, 27 de março de 2011

Entrevista sobre TDAH

Por Gestalt em Movimento
Publicado: 20 de fevereiro de 2011

O Transtorno Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) tem sido bastante discutido por profissionais de diversas áreas. Enquanto, Gestalt-Terapeutas, o TDAH se mostra como um ajustamento criativo através do qual a pessoa está tentando lidar com o seu meio (ambiente/contexto), naquele momento.



Segue abaixo uma entrevista com uma pediatra que ao nosso ver traz muita contribuição ao tema.

“A droga da obediência”



De CartaCapital



Lívia Perozim 10 de fevereiro de 2011 às 20:29h



A pediatra Maria Aparecida Moysés questiona o uso de remédios para focar a atenção. Ela alerta: o efeito de acalmar é sinal de toxicidade.



O Brasil é o segundo maior consumidor mundial dos psicotrópicos chamados metilfenidatos, prescritos para o tratamento de crianças diagnosticadas como portadoras do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Atrás apenas dos Estados Unidos, consumimos, em 2009, 2 milhões de caixas, ante as 70 mil consumidas em 2000. A droga, usada para tratar do que é considerado um distúrbio neurobiológico, é consumida, entre outros, por crianças e adolescentes desatentos, agitados e com dificuldades escolares. Apelidado de a “droga da obediência”, por acalmar e focar a atenção, o medicamento leva os sugestivos nomes de Concerta e Ritalina (produzidos pelos laboratórios Janssen Cilag e Novartis, respectivamente). Seu uso, no entanto, provoca acaloradas discussões. A pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, da Unicamp, é uma das vozes médicas a questionar a existência de “uma doença neurológica que só altere comportamento e aprendizagem”. Nessa entrevista, ela explica as reações adversas da droga e afirma que os critérios para diagnosticar o TDAH são normas sociais.



Carta Fundamental: O consumo de metilfenidatos no Brasil foi de 70 mil, em 2000, para 2 milhões de caixas, em 2009. A que a senhora atribui esse aumento?

Maria Aparecida Affonso Moysés: Outro dado é que o Brasil só perde para os Estados Unidos no consumo dessa droga, o que é assustador, porque este não é um medicamento seguro. O metilfenidato tem várias reações adversas. E veja só: não são efeitos colaterais, são reações adversas e indicam a retirada imediata da droga.



CF: Que tipo de reação?



MAAM: No sistema nervoso causa insônia, cefaleia, alucinações, psicose, suicídio e o principal efeito chamado de Zumbi Like. Significa agir como um zumbi, ou seja, a pessoa fica quimicamente contida em si mesma. Todos esses são sinais de toxicidade e indicam a retirada imediata da droga. No sistema cardiovascular o remédio causa arritmia, taquicardia, hipertensão, parada cardíaca. O risco de morte súbita inexplicada em adolescente é estimado em 10 a 14 vezes maior entre aqueles que tomam o remédio, segundo uma pesquisa de 2009 da Food and Drugs Administration (FDA) e de National Institute of Mental Health (NIMH). Não é desprezível. Além disso, interfere no sistema endócrino, na secreção dos hormônios de crescimento e dos sexuais. É uma substância com o mesmo mecanismo de ação e as mesmas reações adversas da cocaína e das anfetaminas.



CF: O metilfenidato é um estimulante usado para acalmar?

MAAM: Ele acalma pelo efeito zumbi, uma toxicidade. Uma coisa que não se pensa muito é o seguinte: o metilfenidato foca a atenção em quê? É aleatório. Ao conter as atividades cerebrais de tal modo que você não se distraia, esta única coisa em foco é eleita ao acaso. É o que passa pela frente. Não é uma substância que te faz focar no estudo. Não existe isso.



CF: O Brasil perde apenas para os EUA no consumo de metilfenidatos. O que aproxima as sociedades médicas desses países?

MAAM: A sociedade médica brasileira, há 50 anos, era voltada para a França. Hoje é voltada para os EUA. É quase mundial isso, mas na Europa ainda há uma resistência. Somos muito dependentes da tecnologia e da cultura americana, que impõe essa padronização e normalização das pessoas. A gente constrói uma sociedade que quer uma criança cada vez mais ativa e ligada no mundo. Crianças com 4 anos mexem no computador com várias janelas abertas ao mesmo tempo. Quando elas chegam na escola, queremos que elas façam uma coisa só e não questionem. Queremos crianças criativas, ótimas e submissas! Elas questionam, querem saber o porquê. O “não” não basta mais. E os adultos não aguentam isso. A sociedade é muito incomodada com os questionamentos e a gente acaba abafando isso via substância química. Junte isso ao interesse financeiro das indústrias farmacêuticas. Elas financiam cursos, viagens para médicos, vantagens em clínicas. Curso para professores financiado por um laboratório é algo estranho. Não sejamos ingênuos: eles estão, na verdade, treinando professores para identificar futuros clientes consumidores de suas drogas. E esse é um peso muito forte, que consta, inclusive, em relatório do departamento de justiça dos EUA, mostrando como a Ciba-Geigy (Laboratório que viria, a partir de 1996, a formar a Novartis) – financiava entidades de familiares e profissionais ligados à defesa das pessoas com TDAH.



CF: Quais os efeitos desses psicotrópicos quando tomados por longo período?

MAAM: Isso consta em qualquer livro de farmacologia. Vários trabalhos mostram que existe um risco de dependência química muito grande, além de uma dependência psíquica, porque a pessoa se sente mais ativa mesmo. E tem várias pesquisas mostrando que, quando a criança começa a tomar aos 4 anos e retiram o remédio aos 18, existe uma tendência muito grande de drogadição por substância mais pesadas. Se a criança está usando um estimulante desde os 5, 6 anos, ela vai buscar outra droga quando interrompe este uso. No mundo todo, clínicas relatam que metade dos adolescentes conta que começaram a drogadição e a mantém com ritalina. E a fala desses adolescentes é que eles começaram a usar porque é barato, acessível, fácil de comprar, embora tenha receita controlada. Segundo eles, os médicos diziam que era seguro. Como dizem até hoje. Mas não é uma droga segura.



CF: A discordância não é só quanto ao uso ou não da medicação, mas quanto à existência do próprio transtorno.

MAAM: A discordância básica é que não existe uma comprovação aceita de que haja uma doença neurológica que só altere comportamento e aprendizagem. Isso ainda não foi provado. A lógica da medicina é comprovar a doença e depois tratar. Para essa, o remédio foi encontrado antes.



CF: A comprovação seria se encaixar nos critérios do questionário Snap-IV.

MAAM: Aqueles critérios são altamente questionáveis. Aquilo não é critério de doença, é norma social. Como posso transformar uma norma social em biológica? O Snap-IV contém 18 perguntas, e as primeiras nove falam de atenção, e as outras, de hiperatividade. Se você preencher seis das perguntas, tem o diagnóstico de déficit de atenção, hiperatividade ou dos dois. Todas as questões falam de comportamento. Só com base nisso afirmam a presença de uma doença neurológica?



CF: A partir de que idade uma criança pode ser diagnosticada?

MAAM: Há relatos na medicina americana de crianças de 2 anos que teriam dislexia quando entrassem na escola. Como identificar que alguém vai ter dificuldades de ler e escrever aos 2 anos?



CF: Quem defende o uso da medicação argumenta que apenas seu uso incorreto não é seguro e que a criança que não é diagnosticada sofre.

MAAM: Sofre por causa da sociedade. Eu quero trabalhar o conflito que ela está vivendo e libertá-la desse conflito e de uma doença que ela não tem. É preciso entender isso até para poder superar e enfrentar. Agora, quando digo você é doente vou te dar um remédio, os pais ficam aliviados porque, enfim, encontram o problema e podem tratar o filho. Esse é o sonho de todo pai. Mas eles estão iludidos porque essa criança, na verdade, não está sendo tratada. Ela está introjetando ser doente, ter algum problema e tudo o que ela conseguir na vida vai ser porque foi tratada. É totalmente desconsiderada em que situação isso é produzido. Porque os problemas de aprendizagem são todos produzidos.



CF: O rendimento na escola das crianças medicadas melhora.

MAAM: É preciso provar que foi a droga porque se inicia um trabalho pedagógico com a criança, afirma-se que ela está doente, que está sendo tratada, a professora vai ensinar de um modo diferente, ela vai acreditar que pode aprender. A revisão dos trabalhos publicados que preenchem todos os requisitos de pesquisa científica mostra que não há melhora consistente do desempenho acadêmico. Esta é, inclusive, a conclusão de uma reunião feita nos EUA para estabelecer consensos para o diagnóstico e tratamento.



Disponível no site:




quarta-feira, 23 de março de 2011

A hipnose pode ajudar a polícia a desvendar crimes?

19 de março de 2011 •

A Polícia Civil de São paulo pretende utilizar a hipnose para resolver crimes graves

 Angela Chagas

Direto de Porto Alegre

A Polícia Civil de São Paulo anunciou recentemente que tem planos de utilizar a técnica da hipnose para resolver crimes. O Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) do Estado pretende criar ainda neste ano um espaço para que vítimas e testemunhas de violência sejam submetidas a sessões para relembrar informações consideradas esquecidas. Uma proposta semelhante foi utilizada por mais de 10 anos em investigações no Paraná. Afinal, a hipnose pode ajudar os policiais a desvendar crimes?

Há controvérsia em relação à eficácia do método e quanto aos casos em que seria ético fazer uso desse expediente, mas o fato é que a técnica já foi utilizada como ferramenta auxiliar em investigações - e, em alguns casos, com sucesso.

Rui Fernando Cruz Sampaio, perito aposentado do Instituto de Criminalística do Paraná, criou o primeiro Laboratório de Hipnose Forense do Brasil, em 1998, e utilizou a técnica até o final de 2008. "Quando eu me aposentei, o Estado não tinha mais técnicos preparados para fazer o trabalho, por isso o laboratório foi fechado", disse o psiquiatra, que também tem graduação em psicologia.

Segundo ele, a falta de profissionais habilitados é a maior dificuldade para realizar esse tipo de trabalho na polícia. Sampaio começou a utilizar a hipnose em caráter experimental e defende a técnica como um importante aliado na solução de crimes, mas faz um alerta: "a hipnose não pode servir como uma prova, e sim como uma finalidade médica que busca informações das vítimas ou das testemunhas para qualificar a investigação".

O perito afirma que em seu trabalho nunca foram produzidos laudos sobre as sessões de hipnose. "A minha função não era tomar um depoimento da testemunha ou da vítima em estado de hipnose. Isso iria confrontar a lei. A técnica deve ser utilizada somente como um instrumento auxiliar na investigação." Ele cita como exemplo uma vítima de trauma que durante as sessões se lembrou da placa do carro de um suspeito de atropelamento. Ele diz que a informação foi repassada aos investigadores, que encontraram o veículo, fizeram a perícia e comprovaram resquícios de sangue no automóvel. "A hipnose é uma pista, não uma prova cabal."

O presidente da Associação dos Advogados Criminalistas de São Paulo, Ademar Gomes, concorda com a utilização da técnica apenas para auxiliar nas investigações. "No inquérito policial pode (ser usada), para efeito de investigação, desde que as partes envolvidas não se oponham ao procedimento", afirma o criminalista, que contesta o seu emprego no processo penal.

"A defesa tem o direito de questionar a testemunha e a vítima, portanto fazer hipnose entre pessoas envolvidas em um processo criminal viola o direito do contraditório."

Sobre a utilização do método com acusados de crimes, o advogado também é contra. "A nossa lei é bem clara ao afirmar que o acusado não pode fornecer prova contra si próprio."

O especialista em hipnose também é contrário ao emprego da técnica em suspeitos, indiciados e réus em crimes. "Primeiro, porque ninguém e obrigado a produzir prova contra si. Segundo, porque mesmo em estado de hipnose, a pessoa está plenamente consciente e ela pode mentir."

Sampaio diz que já atendeu mais de 700 pessoas, todas testemunhas ou vítimas de estupros, assaltos, sequestros e outros tipos de traumas. "Na maioria dos casos fomos bem-sucedidos, as pessoas conseguiram montar retratos-falados com detalhes da face, identificaram marcas no corpo, detalhes da roupa dos suspeitos, placas de carro e outras informações importantes nas investigações", diz.

 
Emprego da técnica

Segundo Sampaio, na polícia do Paraná o trabalho era feito em uma sala especialmente montada para atender as vítimas e testemunhas. Havia uma janela espelhada caso alguma autoridade quisesse acompanhar a sessão. A pessoa sentava em uma cadeira reclinável e era feita uma entrevista.

"Quando falamos em hipnose, nos referimos a um estado alterado da consciência produzido por uma centena de técnicas. Não existe uma fórmula única, por isso primeiro é importante conhecer a pessoa para depois escolher a técnica mais adequada de acordo com o seu perfil", afirma.

Ele diz que a tendência das pessoas que sofreram um trauma é esquecer os detalhes. "A vítima acaba criando um processo de amnésia, ela vai fazer um retrato-falado e não se lembra. Nesses casos de amnésia parcial ou total a hipnose serve para fazer a pessoa relembrar", explica.

Sampaio diz que, se a técnica for empregada por profissionais da psiquiatria e da psicologia altamente qualificados, sem confrontar com a lei, a hipnose é uma grande aliada da polícia.

 
Reconhecimento Científico

Para o psiquiatra Emmanuel Fortes, 3º vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, diversos estudos já comprovaram a eficiência da hipnose. "De fato ela tem uma larga aplicação em diversas áreas médicas, além da odontologia e da psicologia. Se aplicada com os rigores que a Ciência exige, ela se torna uma importante ferramenta para tratar a dor e também consegue alcançar informações na organização psíquica que espontaneamente não viriam à mente", afirma.

O especialista, no entanto, adverte que a técnica deve ser empregada por profissionais qualificados, que tenham passado por um treinamento rigoroso e que tenham grande conhecimento do aparelho psíquico. "Nem todas as pessoas são suscetíveis a responder à hipnose e muitas podem construir uma memoria falseada e até mentir. O profissional precisa estar preparado para capturar as informações certas", afirma Fortes.

Por isso, ele defende que, para utilizar a hipnose nas investigações de crime, é preciso disponibilizar profissionais preparados para a função. "Desde que seja com o consentimento de quem será hipnotizado e realizado por profissionais qualificados, acredito que auxilia a polícia."



sábado, 19 de março de 2011

ESTAMIRA - 24/03 - NO AUDITÓRIO DA ESTÁCIO DE SÁ - FPOLIS


TESE DE MESTRADO NA USP POR UM PSICÓLOGO

‘Fingi ser gari por 1 mês e vivi como um ser invisível’

Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mestrado da ‘invisibilidade pública’.
Ele comprovou que, em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro.
Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social.

Por Plínio Delphino, Diário de São Paulo.

O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou um mês como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo.

Ali,constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são ’seres invisíveis, sem nome’.

Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da ‘invisibilidade pública’, ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa.
Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior lição de sua vida:
‘Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência’, explica o pesquisador.*
O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não como um ser humano.
‘Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme.
Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão’, diz.
No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca.
Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe, varrendo rua com eles.
Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço.
Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei que eles se servissem
primeiro.
Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo.
No momento em que empunhei a caneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse:
‘E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?’ E eu bebi.
Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.

O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?
Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central.
Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico, passei em frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu.
Eu tive uma sensação muito ruim.
O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angustia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado.
Fui almoçar, não senti o gosto da comida e voltei para o trabalho atordoado.

E depois de um mês trabalhando como gari? Isso mudou?
Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a situações pouco saudáveis.
Então, quando eu via um professor se aproximando – professor meu – até parava de varrer, porque ele ia
passar por mim, podia trocar uma idéia, mas o pessoal passava como se tivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão.

E quando você volta para casa, para seu mundo real?
Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você está inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais.
Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa.
Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, freqüento a casa deles nas periferias.
Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador.
Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele existe.
Eles são tratados pior do que um animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se fossem uma ‘COISA’.

"Ser IGNORADO é uma das piores sensações que existem na vida" (Fernando Braga da Costa )




segunda-feira, 7 de março de 2011

O DURO EXERCÍCIO DO ADEUS...

Especialistas e doentes contam o que pode
amenizar o sofrimento de quem perde
alguém – ou sabe que vai morrer

Thaís Oyama

Você recebe a notícia de que um parente querido tem uma doença letal. Conta ou não conta? Se contar, como? O que vem em seguida é duro: sensação de impotência, tristeza, revolta. Acompanhar o sofrimento do outro, ver o medo em seus olhos. Mais adiante, talvez seja preciso tomar outras decisões terríveis. Até onde vale a pena prorrogar a vida de um doente terminal? Se não suportar submetê-lo ao suplício de uma UTI, as opções continuam difíceis. Negar ao moribundo os cuidados que mantêm os pulmões respirando, o tubo que o alimenta? Em algum momento dessas etapas, ou talvez depois, já no luto, outra pergunta se insinuará: e quando chegar minha hora, como vai ser?

Confrontar-se com a morte, com sua negatividade absoluta, como dizem os filósofos, é a mais aterradora das questões, aquela que acompanha o ser humano desde aquele instante, na infância, quando se descobre o inevitável. Todos os que estamos vivos vamos morrer. Os familiares mais queridos, os amigos. Nós. Mesmo para os que crêem na imortalidade da alma, a lembrança da finitude do corpo apavora. Como lidar com a morte? Não há, obviamente, respostas fáceis. Mas com certeza ignorá-la, sufocar as lágrimas, abafar o luto é a pior maneira, segundo a psicóloga Maria Helena Bromberg. Desde 1994, ela coordena o laboratório de estudos e intervenção sobre o luto, Lelu, serviço de assistência psicológica mantido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, com o objetivo de aliviar a angústia de quem teve uma morte em família. Entre os quinze pacientes do Lelu, seis são mães que perderam os filhos – na escala do luto, a dor mais avassaladora.

Afinal, espera-se que a vida obedeça a uma certa ordem: as crianças crescerão, os adultos envelhecerão e partirão antes delas. Quando o destino subverte essa expectativa, o sofrimento pode ser esmagador. À tristeza profunda somam-se sentimentos como a culpa e o inconformismo. As circunstâncias em que a perda ocorre podem ser agravantes. Especialistas concordam que a morte súbita, seja do filho ou de alguém mais velho, agrava os sintomas do luto. Além de causar choque, a perda repentina não permite despedidas, as conversas derradeiras, aquele último acerto de contas entre os que ficam e o que se vai – uma das poucas atitudes que podem trazer algum alívio à angústia da morte. "A sensação de deixar coisas mal resolvidas ou de não se ter reconciliado com o morto é uma das principais causas de inconformismo para o enlutado", diz Maria Helena.

Esse aspecto da sintomatologia do luto é confirmado por um estudo recente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Fapesp. Com base em 200 entrevistas, a psicóloga Valéria Tinoco, da PUC-SP, descobriu que 24% das pessoas cujos parentes morreram depois de um longo período de doença manifestaram reações de inconformismo. Já entre os que não tiveram tempo de se preparar para a perda, o índice subiu para 41%. Independentemente da forma como se deu a morte, o sentimento de culpa afligiu 20% dos entrevistados. A psicóloga notou, no entanto, que a sensação de culpa persistiu por mais tempo entre os enlutados que não participaram de cerimônias fúnebres: 26% dos que se haviam recusado a tomar parte dos velórios e enterros mantiveram a impressão de que poderiam ter feito algo para impedir a perda ou de que, de alguma forma, tiveram responsabilidade por ela. "A culpa é quase sempre um sentimento irracional, sem fundamento na realidade. A participação nos funerais é um dos momentos em que a pessoa pode expiá-la, 'desculpando-se' para com o morto", explica Valéria Tinoco.

Ter fé também ajuda a mitigar a dor: quem crê padece menos, avaliou o estudo. A crença em algum tipo de sobrevivência espiritual dispara entre os moribundos. Pesquisa feita nos anos 70 na Inglaterra com doentes terminais mostrava que 84% admitiam a possibilidade de vida depois da morte, contra apenas 33% entre pessoas que não estavam para morrer. "A maior parte das crenças dá à morte um caráter de libertação, de evolução", resume o psicanalista Renato Mezan. A certeza de que a efemeridade da vida carrega um sentido divino contribui para abrandar o que, segundo o psicanalista, é um dos piores sentimentos que a idéia da morte pode trazer: a sensação de aniquilamento, a perplexidade diante da constatação de que o cessar da própria vida não modifica em nada os rumos do mundo.

A promessa de que existe alguma coisa além da vida está na base das religiões. Do mártir cristão que se deixava supliciar por centuriões romanos ao jovem terrorista muçulmano que hoje morre sorrindo com uma carga de explosivos amarrada no corpo, nada se compara ao poder da fé para amenizar o horror existencial provocado pela morte. No mundo espiritualizado da Idade Média, a Igreja estimulava os fiéis a alegrar-se com a chegada do fim – porta para a vida eterna. A morte devia ser encarada com naturalidade e resignação. Lutar contra ela era motivo de vergonha. Desenvolveram-se assim na cultura ocidental os ritos que permaneceram mais ou menos os mesmos até o século passado. A morte ideal era a previsível, provocada por doença suficientemente prenunciada de forma a permitir o cerimonial. Em seu leito, cercado pela família e por agregados, o moribundo recebia visitas, manifestava os últimos desejos. Depois, era entregar a alma a Deus, receber os sacramentos das mãos do padre e partir. Seguiam-se os ritos fúnebres: a procissão do Santíssimo, as velas acesas, o dobrar dos sinos, o cortejo até o cemitério.

"A morte de um homem alterava solenemente o espaço e o tempo do grupo social ou da comunidade inteira", escreveu o historiador francês Philippe Ariès, um dos maiores estudiosos do comportamento humano diante da morte. A mudança que tirou a morte do espaço público, transformando-a num exercício de silêncio, começou a acontecer no século XIX. Esconder a notícia da doença funesta, fingir que nada está acontecendo, ocultar o medo são comportamentos que coincidem com mudanças sociais e avanços da medicina. Enquanto a expectativa de vida aumenta, a composição familiar encolhe e se desenvolve uma sensibilidade voltada para poupar o doente do sofrimento de saber o destino que o aguarda, cada vez mais se dissimula o inevitável. O espetáculo da morte, com seus odores, seus gemidos, suas excreções, vai se tornando insuportável. "Avanços em matéria de conforto, privacidade e higiene pessoal tornaram as pessoas mais sensíveis. Nossos sentidos não toleram mais as visões e os cheiros que até o século XIX eram parte do cotidiano, juntamente com o sofrimento e a doença", enumera o historiador. No decorrer do século XX, a morte silencia. Abreviam-se os ritos: vão-se as carpideiras, as vestes negras das viúvas e as portas cerradas em sinal de luto. Nos países anglo-saxões, até expressões de dor em público são tacitamente proscritas, como coisa de mau gosto, quando não de histeria. As lágrimas secam. Na década de 50, a morte passa para os domínios das UTIs, torna-se asséptica e invisível. É como se abandonasse a vida pública para confinar-se à solidão de um leito de hospital.

O homem moderno vive como se jamais fosse morrer. Evita-se o assunto até diante da inexorabilidade da perda. Foi o que aconteceu com a ex-decoradora paulista Vitória Herzberg. Ela perdeu um filho aos 18 anos, vítima de câncer. Todo o processo da doença levou sete meses e, mesmo quando a morte era inevitável, a família continuou recusando-se a falar dela. Hoje, Vitória arrepende-se. Considera que, ao negar-se a conversar sobre o assunto com o filho, fez com que ele se sentisse solitário diante do aterrador medo do fim. Vitória decidiu abandonar a profissão três meses depois do enterro. Tomou a decisão quando ajudava uma cliente a escolher entre dois tons de amarelo que forrariam seu sofá. "Ela estava angustiada com a dúvida, enquanto eu, naquele momento, não conseguia entender sequer por que alguém precisava de um sofá", lembra.

Atualmente, Vitória trabalha em uma associação dedicada a ajudar doentes terminais e seus familiares a lidar com a morte. O Day Care Center, em São Paulo, atende gratuitamente pacientes em sua maioria vítimas de câncer. Eles recebem atendimento médico paliativo, participam de atividades como arte e musicoterapia e são assistidos por psicólogos. Nas conversas, falam, principalmente, da angústia de estar diante da morte. Teme-se pelo que virá depois, teme-se pelo bem-estar dos que ficarão e, principalmente, teme-se pelo sofrimento dos momentos finais.

No Brasil, sofre-se mais para morrer. "Um sofrimento completamente desnecessário", afirma o médico João Augusto Figueiró, especialista em dor do Hospital das Clínicas de São Paulo. Nos Estados Unidos, para cada milhão de pessoas receitam-se diariamente 658 doses de morfina, o mais potente analgésico conhecido. Na Colômbia, essa relação é de trinta doses por milhão de pessoas; na Argentina, de 26. No Brasil, a relação é de uma dose por milhão. Por que se deixa moribundos morrer em sofrimento? O oncologista Cláudio Cabral, do Hospital Araújo Jorge, em Goiânia, vê duas explicações: a primeira é que os médicos brasileiros ainda resistem em prescrever a morfina por medo da dependência que ela cria. A segunda é que não se interessam pelo estudo de tratamentos paliativos. "Isso se deve à cultura das faculdades de medicina. Elas formam o médico para salvar e não para cuidar de pacientes que representam o fracasso dessa tarefa."

Se recusam analgésicos pesados ao doente, os médicos o estão condenando a um sofrimento que poderia ser evitado. Se multiplicam os tratamentos, prolongam um sofrimento inútil. Os médicos, aos quais a sociedade delegou totalmente a responsabilidade pelos que vão morrer, caminham em campo minado. Elias Knobel, chefe da UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, há muito desistiu de riscar pequenas cruzes em seu estetoscópio, hábito que adotavam os residentes da sua época a cada vez que um paciente morria. Ainda hoje, porém, ele se martiriza diante de uma perda ou da iminência da morte: "É difícil explicar o que se sente quando um pai entrega uma criança para você e diz: 'Doutor, eu tenho certeza de que o senhor vai salvar meu filho'. E você sabe que não tem meios para isso. É um peso muito, muito grande", diz Knobel, que é membro do comitê de humanização da UTI, entidade intra-hospitalar dedicada a melhorar a qualidade de vida dos pacientes de risco.

Quem já acompanhou a jornada de um doente terminal sabe quanto existe por fazer para proporcionar a única coisa possível aos entes queridos perto do fim: uma morte digna. Os hospitais brasileiros preocupados com isso são poucos, mas existem. O Araújo Jorge há três anos mantém um grupo dedicado exclusivamente à tarefa de aumentar o bem-estar dos pacientes sem possibilidade de cura. O Grupo de Apoio Paliativo ao Paciente Oncológico, Gappo, é composto por médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, todos voluntários. O objetivo é dar apoio clínico e emocional ao doente terminal, que fica em casa e recebe visitas semanais da equipe. Dessa maneira, pode usufruir da convivência com a família sem se privar dos cuidados que receberia num hospital.

O livro Sobre a Morte e o Morrer, clássico da psiquiatra suíço-americana Elisabeth Kübler-Ross, identifica os cinco estágios por que passam os pacientes que sabem que irão morrer. A primeira fase é a da negação, quando o enfermo se recusa a aceitar a idéia da morte. "Não pode ser verdade", pensa. Ele ignora o diagnóstico e finge que nada mudou em sua vida. Nesse estágio, relata a psiquiatra, é comum o doente apegar-se a falsas convicções, acreditando, por exemplo, que o hospital trocou o resultado de seus exames ou que o diagnóstico é fruto da incompetência do médico.

Quando não consegue mais disfarçar a realidade, sente raiva. Raiva de Deus, raiva do mundo: "Por que eu?" é a pergunta mais freqüente. À revolta misturam-se sentimentos como a inveja das pessoas sadias e o ressentimento em relação a familiares que não considera suficientemente dedicados. "É um dos momentos mais difíceis para a família", afirma a autora. A essa fase segue-se o "estágio da barganha". O doente faz promessas a Deus e tenta "negociar" sua cura. Exibe um estado de espírito mais sereno e torna-se condescendente com os que o rodeiam – por trás dessa mudança de atitude, porém, está a expectativa de que possa reverter a sentença que recai sobre ele. Quando percebe que não tem jeito, mergulha em depressão. Esse quarto estágio muitas vezes coincide com o agravamento do estado de saúde do doente ou a frustração diante do fracasso de um novo tratamento. O paciente entra em contato com a idéia do fim e sente remorso pelo que deixou de fazer. Fecha-se em silêncio e é tomado por uma sensação de derrota e impotência. É o momento que, segundo Kübler-Ross, antecede a chegada do último estágio: o da aceitação. Nele, o paciente está fisicamente debilitado, sente necessidade de dormir mais e de ficar só. Emocionalmente, no entanto, está mais saudável. É como se a dor tivesse se esvanecido, a luta cessado e dado lugar à resignação. O doente absorve a idéia da morte.

Como lidar com a idéia do fim? A História está cheia de exemplos de mortes nobres. Ao receber a sentença de que estava condenado à morte, acusado de corromper a juventude grega, o filósofo Sócrates (470-399 a.C.) respondeu apenas: "E não estamos todos?" Se para os mortais comuns essa elegância é inconcebível, especialistas acostumados a presenciar a agonia concordam que existe pelo menos uma forma de abrandar a angústia que a morte causa. Perto do fim, afirmam, ninguém se arrepende por não ter juntado fortuna, deixado passar a hora de comprar ações na bolsa, feito uma carreira menos do que brilhante. Tampouco se clama por vingança contra as ofensas acumuladas. No apagar da vida, as pessoas anseiam por paz. E o maior obstáculo para essa paz costuma ser o sofrimento por não ter conseguido zerar ressentimentos. Filhos, amores passados, pais, amigos – sempre existe alguma conta pendente. Despedir-se das pessoas amadas e reconciliar-se com elas faz com que morrer seja mais suave tanto para os que ficam quanto para os que se vão, diz a psicóloga Ana Georgia Cavalcanti de Melo, do Day Care. "Quem presencia a agonia tantas vezes aprende que só se consegue ter paz na morte quando se usufrui da vida e se faz as pazes com ela." Viver, no fim, é um exercício para o ato derradeiro.

Fonte: http://veja.abril.com.br/061099/p_078.html