sábado, 29 de março de 2008

Livro responde dúvidas de profissionais Calligaris reflete sobre os dois lados do processo psicanalítico JURANDIR FREIRE COSTA ESPECIAL PARA A FOLHA

Cartas a um Jovem Terapeuta
CONTARDO CALLIGARIS


Certos livros portam o selo da maturidade de quem os escreveu. "Cartas a um Jovem Terapeuta", do colunista da Folha Contardo Calligaris, é um deles. O volume é composto por uma série de respostas a jovens profissionais que pediram a opinião de Calligaris sobre a prática psicoterápico-psicanalítica. O assunto, pode-se imaginar, é gigantesco. Estende-se dos problemas técnicos pontuais às mais espinhosas questões sobre teoria da subjetividade. Tópicos como duração e pagamento de sessões; primeiras entrevistas; valor do diagnóstico; requisitos universitários para o exercício da profissão; escolha de instituições de formação; convívio na comunidade de analistas; critérios de aceitação de clientes e avaliação do processo de cura; relação entre condicionamento cultural e condicionamento biográfico dos sofrimentos mentais etc. são abordados ao longo do texto com precisão e maestria, em uma prosa de bem com a vida, que mostra o espontâneo domínio do autor sobre o que fala. Calligaris, por formação intelectual e inteligência, poderia ter escrito um tratado indigesto sobre "prática analítica". Não lhe faltam destreza discursiva e erudição para usar e abusar de teoria do conhecimento, fenomenologia do corpo, lingüística, sociologia do individualismo, história das mentalidades, sem contar, é óbvio, a familiaridade que tem com os grandes clássicos da psicanálise. Nada disso prende sua atenção ao se dirigir aos jovens terapeutas. O estofo teórico, certamente, permite-lhe vasculhar o edifício psicanalítico com segurança. Sua preocupação, entretanto, é cavar até onde a pá entorta para chegar ao coração do sofrimento humano. Teorias, ele sugere, podem facilmente encantar, mas nunca acordar o terapeuta imerso em devaneios narcísicos. Temas como a "curvatura da pulsão" -dado como exemplo bem-humorado de um certo gosto por especiarias conceituais- podem ser amáveis quebra-cabeças para momentos de lazer. Para a prática psicoterápico-psicanalítica, no entanto, não são nem mais nem menos decisivos do que saber "quantos anjos -em pé ou deitados- cabem na cabeça de um alfinete"! Ir direto ao sofrimento humano, contudo, não é fazer o elogio do sentimentalismo; é pensar sobre o sentido da cura. Neste ponto, o som da maturidade faz-se ouvir. Calligaris centra a discussão em dois temas cruciais para a prática clínica, os atributos requeridos para quem quer ser analista e os atributos exigidos de quem quer se analisar. Nos dois casos, trata-se de refletir sobre as qualidades pessoais que habilitam ambos os atores ao exercício do processo analítico. Do lado do terapeuta-analista, o grande enigma é o da sensibilidade para com a variabilidade expressiva da vida humana; do lado do analisando, a disponibilidade para sentir-se implicado naquilo que pensa, deseja ou faz. Por trás da simplicidade da formulação, encontra-se o conflito entre o impulso para a liberdade e o conforto em pertencer a um corpo de valores e instituições, sem o qual o primeiro termo da equação perderia a razão de ser. Na prática, diz Calligaris, não há saída fácil para o dilema. Seja como for, o psicanalista deve evitar, tanto quanto possível, ser um moralista. Isto é, deve "considerar a variedade das vidas e das condutas com carinho e indulgência", em função de sua experiência de vida. Sem a consciência de que seus próprios desejos são singulares e, muitas vezes, contrários à herança moral recebida, ele corre o risco de julgar o outro sem considerar o que Freud, a duras penas, revelou: em algum lugar do passado, do presente ou do futuro, mostramos ou mostraremos que somos todos existências em aberto, na procura incessante de satisfação, que pode se realizar no melhor e no pior. Assim, o que torna o analista apto a escutar o sofrimento alheio não é a pretensão de ser um lírio no lodo, mas o esforço para não converter seu desejo em poder sobre o desejo do outro. A força da transferência não pode se tornar golpe de violência. De modo similar, o candidato à análise não pode fazer do sintoma álibi para a demissão de si. Desonerar-se de pensar sobre o que se faz, disse Hannah Arendt, é dar as costas à homologia consigo mesmo; desistir de ser sujeito, diz Calligaris, é imaginar que a homologia foi encontrada na submissão a ideais coletivos ou individuais de pureza moral, religiosa, política, econômica, étnica, racial, artística ou mesmo psicanalítica. Quem admite a dúvida sobre o que é pode ser ajudado a assumir a responsabilidade para com a incompletude; quem acha que já achou a verdade, dificilmente abandonará o gozo com a irresponsabilidade para consigo e com a crueldade para com os outros. Em resumo, "Cartas a um Jovem Terapeuta" é uma meditação psicanalítica simpaticamente oferecida a todos. Um texto denso sem prepotência e irônico sem ressentimentos. É bom encontrar alguém que faz, com mais perícia e talento, o que gostaríamos de ter feito. Ganhamos todos. O público interessado na questão, os especialistas, a literatura analítica brasileira e, em especial, os jovens terapeutas e os analisados em busca de uma psicanálise humanamente útil.

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