sábado, 7 de agosto de 2010

A arqueologia da alienação

por Fernando F. Nicolazzi

A História da loucura é o primeiro grande texto de Foucault; sua tese de doutoramento que tomou seu tempo durante quase toda a segunda metade da década de 50Trata-se de uma parte de sua prática nos trabalhos em clínicas psiquiátricas motivados por uma grande curiosidade sobre os princípios da psicologia. Tomado pela crítica como um ícone da anti-psiquiatria, é neste livro que nasce, em seu pensamento, a noção de arqueologia.

A arqueologia da alienação é o conceito que lhe permitiu tratar do "grau zero na história da loucura", ou seja, não daquilo que foi pensado sobre ela, mas daquelas que foram as condições de possibilidade para um pensamento sobre a loucura. Direcionando seu olhar a uma região de vazio, isto é, "uma região, sem dúvida, onde se trataria mais dos limites do que da identidade de uma cultura", Foucault quer "interrogar uma cultura sobre suas experiências limites (o que significa) questioná-la, nos confins da história, sobre um dilaceramento que é como o nascimento mesmo de sua história" . Em outras palavras: a arqueologia de 1961 é o que permite ouvir, no silêncio do tempo, a instauração originária do que são os limites de uma cultura, que lhe dão seus contornos e que definem, por assim dizer, as condições de sua historicidade: a arqueologia é o estudo de história naquilo que é ausência da história.
Mas de que forma se dá esta pesquisa que, por se colocar abaixo da história, não permite a utilização dos instrumentos da historiografia tradicional? Foucault é enfático: "não se trata de uma história do conhecimento, mas dos movimentos rudimentares de uma experiência". Deste modo, "fazer a história da loucura quererá então dizer: fazer um estudo estrutural do conjunto histórico" daquilo que constituiu a experiência da loucura na época clássica (séculos XVII-XVIII) – noções, instituições, conceitos científicos, práticas sociais, etc. Ainda que mais tarde, como veremos, Foucault reagirá ferozmente contra aqueles que o inseriram no estruturalismo, a linguagem utilizada por ele se deve, sobretudo, ao ambiente francês dos anos 50 e 60, de Barthes, Lacan, Lévi-Strauss e Althusser.

O que é certo, porém, é a peculiaridade do estudo estrutural realizado por ele. Muito diferente da pesquisa das estruturas sociais que desconsidera os eventos históricos como não significativos historicamente, na história da loucura os acontecimentos têm papel fundamental. Se Braudel afirmara em relação aos acontecimentos que, "para além de seu clarão, a obscuridade permanece vitoriosa", onze anos depois, para Foucault, os eventos pontuais se libertam de seu caráter obscuro e, com toda sua visibilidade, vão assumir uma função simbólica preponderante, pois que evidenciam a superfície cultural em relação a qual uma experiência da loucura toma lugar. Assim, discorrendo sobre a onda de internamento de mendigos, vagabundos, alienados, miseráveis que ocorreu na Europa no século XVII, a significação, quer espacial quer temporal, do internamento é vislumbrada a partir de datas de referência: em "1656, decreto da fundação, em Paris, do Hospital Geral"; "nos países de língua alemã, é o caso da criação das casas de correção, as Zuchthäusern (1620)"; "na Inglaterra, as origens da internação são mais distantes (...) um ato de 1575 prescreve a construção de houses of correction". A recorrência a datas significativas (um édito real, a construção de um hospital, um texto científico) é uma constante no livro. No entanto, os acontecimentos não significam isoladamente, e, em certos momentos, eventos de superfície não atingem as grandes estruturas. Portanto, "por trás da crônica da legislação (...), são essas estruturas que se tem de estudar".

A arqueologia, na relação que, enquanto estudo estrutural, mantém entre acontecimento e estrutura, se pretende algo além da mera "crônica das descobertas ou de uma história das idéias": define-se como a descrição "do encadeamento das estruturas fundamentais da experiência, a história daquilo que tornou possível o próprio aparecimento de uma psicologia". Aparecimento que encontra sua visibilidade em determinados acontecimentos significativos; acontecimentos que obedecem ao movimento temporal de estruturas históricas.

O surgimento da psicologia é visto como a ocorrência de um fato cultural motivado, sobretudo, por uma experiência da loucura. Roberto Machado e, seguindo-o, André Queiroz atribuem a esta "experiência fundamental" um caráter originário das figuras da loucura, para o primeiro, e, para o segundo, uma certa continuidade trans-histórica que impossibilitaria uma descontinuidade absoluta na história das percepções da loucura. O posicionamento arqueológico é, portanto, não um simples método historiográfico, mas o lugar onde é preciso se colocar para analisar aquilo que é um pouco anterior à história, que é mesmo sua condição de possibilidade: uma continuidade muda e fundamental que faz ecoar as figuras históricas da loucura.

Finalmente, por ser originária de uma certa história, a experiência da loucura está além do próprio saber sobre ela e, por conseguinte, do próprio sujeito que conhece: ela se encontra no nível da simples percepção, anterior à tomada de consciência: "o medo diante da loucura, o isolamento para o qual ela é arrastada, designam, ambos, uma região bem obscura onde a loucura é primitivamente sentida – reconhecida antes de ser conhecida – e onde se trama aquilo que pode haver de histórico em sua verdade imóvel". Se a história pode, realmente, ser feita por sujeitos que a conhecem, ela nasce ali mesmo onde não há sujeito de conhecimento, onde o perceptivo impera anterior ao cognitivo, onde o medo se sobrepõe ao saber, aonde, enfim, só uma arqueologia pode dirigir seu olhar e, de fato, vislumbrar uma história.

As Histórias de Michel Foucault
Fernando F. Nicolazzi
Mestrando - UFRGS
teobaldorios@hotmail.com

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