segunda-feira, 7 de março de 2011

O DURO EXERCÍCIO DO ADEUS...

Especialistas e doentes contam o que pode
amenizar o sofrimento de quem perde
alguém – ou sabe que vai morrer

Thaís Oyama

Você recebe a notícia de que um parente querido tem uma doença letal. Conta ou não conta? Se contar, como? O que vem em seguida é duro: sensação de impotência, tristeza, revolta. Acompanhar o sofrimento do outro, ver o medo em seus olhos. Mais adiante, talvez seja preciso tomar outras decisões terríveis. Até onde vale a pena prorrogar a vida de um doente terminal? Se não suportar submetê-lo ao suplício de uma UTI, as opções continuam difíceis. Negar ao moribundo os cuidados que mantêm os pulmões respirando, o tubo que o alimenta? Em algum momento dessas etapas, ou talvez depois, já no luto, outra pergunta se insinuará: e quando chegar minha hora, como vai ser?

Confrontar-se com a morte, com sua negatividade absoluta, como dizem os filósofos, é a mais aterradora das questões, aquela que acompanha o ser humano desde aquele instante, na infância, quando se descobre o inevitável. Todos os que estamos vivos vamos morrer. Os familiares mais queridos, os amigos. Nós. Mesmo para os que crêem na imortalidade da alma, a lembrança da finitude do corpo apavora. Como lidar com a morte? Não há, obviamente, respostas fáceis. Mas com certeza ignorá-la, sufocar as lágrimas, abafar o luto é a pior maneira, segundo a psicóloga Maria Helena Bromberg. Desde 1994, ela coordena o laboratório de estudos e intervenção sobre o luto, Lelu, serviço de assistência psicológica mantido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, com o objetivo de aliviar a angústia de quem teve uma morte em família. Entre os quinze pacientes do Lelu, seis são mães que perderam os filhos – na escala do luto, a dor mais avassaladora.

Afinal, espera-se que a vida obedeça a uma certa ordem: as crianças crescerão, os adultos envelhecerão e partirão antes delas. Quando o destino subverte essa expectativa, o sofrimento pode ser esmagador. À tristeza profunda somam-se sentimentos como a culpa e o inconformismo. As circunstâncias em que a perda ocorre podem ser agravantes. Especialistas concordam que a morte súbita, seja do filho ou de alguém mais velho, agrava os sintomas do luto. Além de causar choque, a perda repentina não permite despedidas, as conversas derradeiras, aquele último acerto de contas entre os que ficam e o que se vai – uma das poucas atitudes que podem trazer algum alívio à angústia da morte. "A sensação de deixar coisas mal resolvidas ou de não se ter reconciliado com o morto é uma das principais causas de inconformismo para o enlutado", diz Maria Helena.

Esse aspecto da sintomatologia do luto é confirmado por um estudo recente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Fapesp. Com base em 200 entrevistas, a psicóloga Valéria Tinoco, da PUC-SP, descobriu que 24% das pessoas cujos parentes morreram depois de um longo período de doença manifestaram reações de inconformismo. Já entre os que não tiveram tempo de se preparar para a perda, o índice subiu para 41%. Independentemente da forma como se deu a morte, o sentimento de culpa afligiu 20% dos entrevistados. A psicóloga notou, no entanto, que a sensação de culpa persistiu por mais tempo entre os enlutados que não participaram de cerimônias fúnebres: 26% dos que se haviam recusado a tomar parte dos velórios e enterros mantiveram a impressão de que poderiam ter feito algo para impedir a perda ou de que, de alguma forma, tiveram responsabilidade por ela. "A culpa é quase sempre um sentimento irracional, sem fundamento na realidade. A participação nos funerais é um dos momentos em que a pessoa pode expiá-la, 'desculpando-se' para com o morto", explica Valéria Tinoco.

Ter fé também ajuda a mitigar a dor: quem crê padece menos, avaliou o estudo. A crença em algum tipo de sobrevivência espiritual dispara entre os moribundos. Pesquisa feita nos anos 70 na Inglaterra com doentes terminais mostrava que 84% admitiam a possibilidade de vida depois da morte, contra apenas 33% entre pessoas que não estavam para morrer. "A maior parte das crenças dá à morte um caráter de libertação, de evolução", resume o psicanalista Renato Mezan. A certeza de que a efemeridade da vida carrega um sentido divino contribui para abrandar o que, segundo o psicanalista, é um dos piores sentimentos que a idéia da morte pode trazer: a sensação de aniquilamento, a perplexidade diante da constatação de que o cessar da própria vida não modifica em nada os rumos do mundo.

A promessa de que existe alguma coisa além da vida está na base das religiões. Do mártir cristão que se deixava supliciar por centuriões romanos ao jovem terrorista muçulmano que hoje morre sorrindo com uma carga de explosivos amarrada no corpo, nada se compara ao poder da fé para amenizar o horror existencial provocado pela morte. No mundo espiritualizado da Idade Média, a Igreja estimulava os fiéis a alegrar-se com a chegada do fim – porta para a vida eterna. A morte devia ser encarada com naturalidade e resignação. Lutar contra ela era motivo de vergonha. Desenvolveram-se assim na cultura ocidental os ritos que permaneceram mais ou menos os mesmos até o século passado. A morte ideal era a previsível, provocada por doença suficientemente prenunciada de forma a permitir o cerimonial. Em seu leito, cercado pela família e por agregados, o moribundo recebia visitas, manifestava os últimos desejos. Depois, era entregar a alma a Deus, receber os sacramentos das mãos do padre e partir. Seguiam-se os ritos fúnebres: a procissão do Santíssimo, as velas acesas, o dobrar dos sinos, o cortejo até o cemitério.

"A morte de um homem alterava solenemente o espaço e o tempo do grupo social ou da comunidade inteira", escreveu o historiador francês Philippe Ariès, um dos maiores estudiosos do comportamento humano diante da morte. A mudança que tirou a morte do espaço público, transformando-a num exercício de silêncio, começou a acontecer no século XIX. Esconder a notícia da doença funesta, fingir que nada está acontecendo, ocultar o medo são comportamentos que coincidem com mudanças sociais e avanços da medicina. Enquanto a expectativa de vida aumenta, a composição familiar encolhe e se desenvolve uma sensibilidade voltada para poupar o doente do sofrimento de saber o destino que o aguarda, cada vez mais se dissimula o inevitável. O espetáculo da morte, com seus odores, seus gemidos, suas excreções, vai se tornando insuportável. "Avanços em matéria de conforto, privacidade e higiene pessoal tornaram as pessoas mais sensíveis. Nossos sentidos não toleram mais as visões e os cheiros que até o século XIX eram parte do cotidiano, juntamente com o sofrimento e a doença", enumera o historiador. No decorrer do século XX, a morte silencia. Abreviam-se os ritos: vão-se as carpideiras, as vestes negras das viúvas e as portas cerradas em sinal de luto. Nos países anglo-saxões, até expressões de dor em público são tacitamente proscritas, como coisa de mau gosto, quando não de histeria. As lágrimas secam. Na década de 50, a morte passa para os domínios das UTIs, torna-se asséptica e invisível. É como se abandonasse a vida pública para confinar-se à solidão de um leito de hospital.

O homem moderno vive como se jamais fosse morrer. Evita-se o assunto até diante da inexorabilidade da perda. Foi o que aconteceu com a ex-decoradora paulista Vitória Herzberg. Ela perdeu um filho aos 18 anos, vítima de câncer. Todo o processo da doença levou sete meses e, mesmo quando a morte era inevitável, a família continuou recusando-se a falar dela. Hoje, Vitória arrepende-se. Considera que, ao negar-se a conversar sobre o assunto com o filho, fez com que ele se sentisse solitário diante do aterrador medo do fim. Vitória decidiu abandonar a profissão três meses depois do enterro. Tomou a decisão quando ajudava uma cliente a escolher entre dois tons de amarelo que forrariam seu sofá. "Ela estava angustiada com a dúvida, enquanto eu, naquele momento, não conseguia entender sequer por que alguém precisava de um sofá", lembra.

Atualmente, Vitória trabalha em uma associação dedicada a ajudar doentes terminais e seus familiares a lidar com a morte. O Day Care Center, em São Paulo, atende gratuitamente pacientes em sua maioria vítimas de câncer. Eles recebem atendimento médico paliativo, participam de atividades como arte e musicoterapia e são assistidos por psicólogos. Nas conversas, falam, principalmente, da angústia de estar diante da morte. Teme-se pelo que virá depois, teme-se pelo bem-estar dos que ficarão e, principalmente, teme-se pelo sofrimento dos momentos finais.

No Brasil, sofre-se mais para morrer. "Um sofrimento completamente desnecessário", afirma o médico João Augusto Figueiró, especialista em dor do Hospital das Clínicas de São Paulo. Nos Estados Unidos, para cada milhão de pessoas receitam-se diariamente 658 doses de morfina, o mais potente analgésico conhecido. Na Colômbia, essa relação é de trinta doses por milhão de pessoas; na Argentina, de 26. No Brasil, a relação é de uma dose por milhão. Por que se deixa moribundos morrer em sofrimento? O oncologista Cláudio Cabral, do Hospital Araújo Jorge, em Goiânia, vê duas explicações: a primeira é que os médicos brasileiros ainda resistem em prescrever a morfina por medo da dependência que ela cria. A segunda é que não se interessam pelo estudo de tratamentos paliativos. "Isso se deve à cultura das faculdades de medicina. Elas formam o médico para salvar e não para cuidar de pacientes que representam o fracasso dessa tarefa."

Se recusam analgésicos pesados ao doente, os médicos o estão condenando a um sofrimento que poderia ser evitado. Se multiplicam os tratamentos, prolongam um sofrimento inútil. Os médicos, aos quais a sociedade delegou totalmente a responsabilidade pelos que vão morrer, caminham em campo minado. Elias Knobel, chefe da UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, há muito desistiu de riscar pequenas cruzes em seu estetoscópio, hábito que adotavam os residentes da sua época a cada vez que um paciente morria. Ainda hoje, porém, ele se martiriza diante de uma perda ou da iminência da morte: "É difícil explicar o que se sente quando um pai entrega uma criança para você e diz: 'Doutor, eu tenho certeza de que o senhor vai salvar meu filho'. E você sabe que não tem meios para isso. É um peso muito, muito grande", diz Knobel, que é membro do comitê de humanização da UTI, entidade intra-hospitalar dedicada a melhorar a qualidade de vida dos pacientes de risco.

Quem já acompanhou a jornada de um doente terminal sabe quanto existe por fazer para proporcionar a única coisa possível aos entes queridos perto do fim: uma morte digna. Os hospitais brasileiros preocupados com isso são poucos, mas existem. O Araújo Jorge há três anos mantém um grupo dedicado exclusivamente à tarefa de aumentar o bem-estar dos pacientes sem possibilidade de cura. O Grupo de Apoio Paliativo ao Paciente Oncológico, Gappo, é composto por médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, todos voluntários. O objetivo é dar apoio clínico e emocional ao doente terminal, que fica em casa e recebe visitas semanais da equipe. Dessa maneira, pode usufruir da convivência com a família sem se privar dos cuidados que receberia num hospital.

O livro Sobre a Morte e o Morrer, clássico da psiquiatra suíço-americana Elisabeth Kübler-Ross, identifica os cinco estágios por que passam os pacientes que sabem que irão morrer. A primeira fase é a da negação, quando o enfermo se recusa a aceitar a idéia da morte. "Não pode ser verdade", pensa. Ele ignora o diagnóstico e finge que nada mudou em sua vida. Nesse estágio, relata a psiquiatra, é comum o doente apegar-se a falsas convicções, acreditando, por exemplo, que o hospital trocou o resultado de seus exames ou que o diagnóstico é fruto da incompetência do médico.

Quando não consegue mais disfarçar a realidade, sente raiva. Raiva de Deus, raiva do mundo: "Por que eu?" é a pergunta mais freqüente. À revolta misturam-se sentimentos como a inveja das pessoas sadias e o ressentimento em relação a familiares que não considera suficientemente dedicados. "É um dos momentos mais difíceis para a família", afirma a autora. A essa fase segue-se o "estágio da barganha". O doente faz promessas a Deus e tenta "negociar" sua cura. Exibe um estado de espírito mais sereno e torna-se condescendente com os que o rodeiam – por trás dessa mudança de atitude, porém, está a expectativa de que possa reverter a sentença que recai sobre ele. Quando percebe que não tem jeito, mergulha em depressão. Esse quarto estágio muitas vezes coincide com o agravamento do estado de saúde do doente ou a frustração diante do fracasso de um novo tratamento. O paciente entra em contato com a idéia do fim e sente remorso pelo que deixou de fazer. Fecha-se em silêncio e é tomado por uma sensação de derrota e impotência. É o momento que, segundo Kübler-Ross, antecede a chegada do último estágio: o da aceitação. Nele, o paciente está fisicamente debilitado, sente necessidade de dormir mais e de ficar só. Emocionalmente, no entanto, está mais saudável. É como se a dor tivesse se esvanecido, a luta cessado e dado lugar à resignação. O doente absorve a idéia da morte.

Como lidar com a idéia do fim? A História está cheia de exemplos de mortes nobres. Ao receber a sentença de que estava condenado à morte, acusado de corromper a juventude grega, o filósofo Sócrates (470-399 a.C.) respondeu apenas: "E não estamos todos?" Se para os mortais comuns essa elegância é inconcebível, especialistas acostumados a presenciar a agonia concordam que existe pelo menos uma forma de abrandar a angústia que a morte causa. Perto do fim, afirmam, ninguém se arrepende por não ter juntado fortuna, deixado passar a hora de comprar ações na bolsa, feito uma carreira menos do que brilhante. Tampouco se clama por vingança contra as ofensas acumuladas. No apagar da vida, as pessoas anseiam por paz. E o maior obstáculo para essa paz costuma ser o sofrimento por não ter conseguido zerar ressentimentos. Filhos, amores passados, pais, amigos – sempre existe alguma conta pendente. Despedir-se das pessoas amadas e reconciliar-se com elas faz com que morrer seja mais suave tanto para os que ficam quanto para os que se vão, diz a psicóloga Ana Georgia Cavalcanti de Melo, do Day Care. "Quem presencia a agonia tantas vezes aprende que só se consegue ter paz na morte quando se usufrui da vida e se faz as pazes com ela." Viver, no fim, é um exercício para o ato derradeiro.

Fonte: http://veja.abril.com.br/061099/p_078.html





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