segunda-feira, 23 de junho de 2008

Opinião Acadêmica: BICHO DE SETE CABEÇAS

BICHO DE SETE CABEÇAS[1]
Sandra Beck da Silva Etges

"Que a tendência à morte seja vivida pelo homem como objeto de um apetite, esta é uma realidade que a análise faz aparecer em todos os níveis do psiquismo ...", (pois) ... "Essa tendência psíquica à morte, sob a forma original que lhe dá o desmame, revela-se em suicídios muito especiais que se caracterizam como "não-violentos', ao mesmo tempo que aí aparece a forma oral do complexo: ..., envenenamento lento de certos toxicomanias pela boca ... A análise desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago (ancestral) da mãe".In ... LACAN, Jacques. Os Complexos Familiares, RJ, Jorge Zahar, pág. 28 e 29.
O filme "Bicho de Sete Cabeças" é baseado numa história verídica ocorrida nos anos 70, e apresenta mais uma abordagem anti-asilamento do que uma preocupação com a prevenção e o tratamento do uso das drogas.
Inicialmente, penso ser indispensável abordar com vocês algumas questões preliminares que colocam o tema deste filme para além da denúncia do horror da repressão psiquiátrica da época. Para tanto, vou tentar contextualizar essa questão do uso de drogas.
Nos anos 60, a droga era valorizada como "contestação política, sexo e Rock and Roll", e a paternidade que tentava censurar o seu uso era vista como "careta". Então, o que estava atrelado ao uso da droga era o caráter de contestação, fosse a contestação política à guerra do Vietnã, ou fosse "sexo, droga e/ou Rock and Roll". Segundo pesquisa universitária realizada no Rio de Janeiro (UERJ), os anos 60 foram anos difíceis, porque as pessoas, opondo-se ao patriarcado, caíam no extremo oposto: no culto ao Princípio do Prazer. Isto produzia um efeito de desagregação do Simbólico que as incapacitava a identificarem o seu Desejo nas coisas, porque esse Desejo a que estou me referindo é diferente de Princípio do Prazer. O Desejo comparece como falta, no limite da Lei do Pai, mas como esse pai imaginário era visto e tido como "severo", porque autoritário, não podia ser escutado. Isto gerou uma situação "doentia" que era o não acatamento da Lei e esta Lei é que possibilita se ter uma relação com a "falta a ser" que, por sua vez, é condição para se desejar (na vida). Então, não havendo Lei, não há Desejo e as pessoas recorriam, momentânea e repetidamente, ao uso das drogas e esse consumo era valorizado como "ser moderno", "ser porreta". A alta classe média comprava a droga e a consumia, e a drogadicção não tinha o nível de expansão econômica que tem hoje, nem havia sido incorporada pelo crime e pelo terror na proporção atual. Essas questões foram gradativamente incorporadas à drogadicção, quando o narcotráfico passou a ser, ilicitamente, o "meio de vida" das classes menos favorecidas, passando a ter o poder nas favelas e, também, a ter parcela do poder econômico na sociedade em geral.
Desta forma, quando a droga se associou ao crime e provocou desagregação social, as mesmas pessoas que "cheiravam" para se sentir(em) bem e ser(em) "contra o sistema", embora paradoxalmente fossem economicamente integrada(s) (aliás, na época a droga era usada mais por adultos do que por adolescentes), começaram a ficar ameaçada(s) pelos efeitos de assaltos, de seqüestros, conseqüências da drogadicção. A droga então, passou a ser não só algo prejudicial à saúde do usuário, algo que atendia ao gozo suicida do usuário, mas também passou a ter uma expansão ligada ao crime, o que passou a ameaçar a sociedade como um todo.
A droga, hoje, é, sem dúvida, um problema policial, um problema de corrupção, ligado à favelização e ao controle, pelo terror, das populações subalternas, aos sequestros relâmpagos, ao contrabando de armas e à prostituição. É, portanto, um elemento de desagregação que coloca em risco a vida de todo o mundo. Essa é a conotação que a mídia, a partir dos anos 80, dá para a droga e isso obriga as pessoas a conviverem com o risco da morte sem que essa seja uma opção delas. A revista Veja de 25 de julho de 2001 traz que, segundo dados da ONU, existem 180 milhões de drogados no mundo e que na Holanda, onde a maconha foi liberada há vinte anos, para maiores de 18 anos, ao contrário do que sempre se supôs e/ou alegou, aumentou consideravelmente a criminalidade, pois, metade dos crimes cometidos no país são ligados aos entorpecentes, e o número de presos triplicou nos últimos 10 anos.
O filme "Bicho de 7 cabeças" apresenta o usuário de drogas típico dos anos 60-70, onde o que estava implícito no uso das drogas era, ainda, o caráter de contestação à severidade paterna, trazendo a bandeira do anti-asilamento, mas não adotando a bandeira anti-drogas, e poderíamos dizer que o asilamento repressivo como mostra o filme, e a dependência às drogas, são igualmente nocivos.
A drogadicção, atualmente, não é um capítulo apenas da psicanálise de consultório. Envolve esquemas financeiros, políticos, policiais ... enfim, envolve a corrupção, o que dificulta seu combate em todo o mundo. Assim, é necessário por em cena a perversidade e o perversismo que tornam a drogadicção uma realidade de consumo, bem como, as causas de seu consumo individual e a sua distinção em relação a outras manifestações psíquicas graves. E, ao se abolir o asilamento, há o risco de, principalmente nas populações de baixa renda, hoje mais afetas diretamente, por razões urbanas e geográficas, ao contato marginal com as drogas, não se ter como tratar os casos mais graves, tanto da drogadicção, quanto das psicoses e, assim, aumentarem as manifestações de violência no cotidiano.
Hoje, admite-se o asilamento só quando há risco de vida ou de desagregação social e/ou econômica do usuário de drogas ou das pessoas que com ele convivem; e ocorre, em sua maioria, para populações que não têm a assistência médica e psicanalítica necessárias e por um período temporário (breve), em geral, de um mês; portanto, em situação completamente diferente da mostrada no filme. Essa internação explicitada no filme, é lamentável e condenável. O filme induz à generalização de um modelo de internação já superado, como se ocorresse, em sua maioria, ainda hoje. Uma coisa é evitar-se o asilamento repressivo e desumano, porque desnecessário, porque torturante, repetindo equívocos da psiquiatria dos séc. XVIII e XIX; deve-se evitar o tratamento clinicamente incompetente do sucessor do "endemoniado" medieval. Outra, bem diferente, é abolir-se o asilamento em casos onde há o risco de vida (própria ou de outrem). Vamos usar um outro exemplo para ficar mais claro: o fato de alguns hospitais sabidamente cometerem uma série de imprudências com nasciturnos, não vai acarretar o também fato de que se passe a proibir a existência de maternidades. O raciocínio é idêntico. Para a proteção da vida tanto as maternidades como os hospitais psiquiátricos são igualmente necessários e indispensáveis e o filme trata essa questão como se, nos dias de hoje, não existissem asilamentos singulares competentes e com divisões específicas para cada estrutura psíquica. Aquele asilamento colocava no mesmo "saco" da "doença mental", paranóicos e dependentes de drogas, o que já foi exaustivamente denunciado na obra de Michael Foucault nos anos 60.
Parece-me que, diante do absurdo daquele asilamento, o filme pode promover uma identificação com a vítima e, assim, ele passa a ter um caráter tolerante para com a drogadicção, banalizando, dessa forma, o uso da droga. Uma pessoa que estava ao meu lado no cinema, ao final do filme falou: "fizeram um bicho de 7 cabeças com a maconha do menino, antes ele tivesse ficado com ela". Do ponto de vista lacaneano do "Kant com Sade", que é um texto de Lacan nos Escritos (1966), "a severidade repressiva gera a identificação à vítima e às suas razões", e o caráter de vitimação é o pior caminho para qualquer possibilidade de recuperação e/ou cura.
Então, o que quero salientar é que não dá para se falar em droga hoje, levando-se em conta apenas o seu caráter contestatório próprio dos anos 60 e 70. Isso é passado. Hoje, os atos recentes mostram que guerrilheiros, terroristas e traficantes têm-se misturado bastante, colocando em risco o mundo; vide, por exemplo, os Talibãs que viviam da venda de heroína. Então, não se pode ser complacente e tolerante para com a drogadicção e já existem maneiras diferentes da apresentada no filme para se tratar o dependente de drogas. Aliás, o foco do filme não foi o tratamento e sim o não tratamento, talvez sua "suposta não necessidade".
No entanto, por outro lado, o filme suscita o seguinte questionamento que todos deveriam fazer sobre o tratamento e prevenção do uso das drogas. O que fazer de fato? O que será que pede alguém que recorre às drogas? - Na sua busca desenfreada e gozoza de prazer na droga, que é a manifestação de seu gozo com a morte, ele "pede" que alguém o contenha, que alguém lhe dê um basta ou tente fazê-lo, porque ele não consegue conter-se sozinho, já que sofre e goza com isto. Ele quer encontrar, na fala de um outro, algum lugar que justifique a sua inclusão no mundo. Ele quer ser "falado" sem dó, compaixão ou culpa; ele quer ser reconhecido por algo que ele é ou que pode vir a ser. E tudo isso comparece numa parte belíssima do filme que é o encontro do "Neto"[2] com a garota. A meu ver, o melhor momento do filme porque, ali, é tirado de cena o caráter de vitimação do menino incompreendido pela família. Naquele momento, após se decepcionar com os amigos, um dos amigos tenta seduzí-lo sexualmente, ele sai desesperadamente à procura de alguém que possa lhe dar um dinheiro para voltar para casa, e ao encontrar essa garota, ela lhe oferece um suco e diz a ele que emprestaria o dinheiro com a condição de ele lhe devolver pelo correio. Essa atitude foi extremamente desejante, porque pôs um limite ao lugar vitimado que "Neto" ocupava para os outros e o reconhece como um homem (homem que não "Neto") capaz de pagar por suas coisas, acreditando na sua capacidade de conviver com o mundo.
Essa garota o leva para sua casa onde prepara um jantar para seus amigos e, com muito empenho e carinho, o inclui no preparo dos pratos, o ensina a cortar o gengibre, numa atitude até então desconhecida por "Neto". É neste clima, com uma sonografia e colorido muito bonitos, que ele teve (no filme) a sua primeira e parece que última relação amorosa. Talvez sua primeira possibilidade de encontro com sua questão desejante, de subjetivar um lugar que lhe fosse próprio. Ele passa, a partir de então, a ter algo para sonhar e não para esquecer. Ele passa a ter uma possibilidade para construir uma expectativa de que a vida possa valer à pena.
O filme então, nesta parte, apresenta uma saída para a drogadicção que não pela via da severidade repressiva ou pelo álibi da vitimação, e, sim, por uma via desejante, que não quer dizer a da compaixão, que não quer dizer o atender a tudo que o outro pedir. O dependente de drogas precisa querer se dar conta do gozo para com a morte que desenvolveu, deste gozo irrefreável em se ver em situações para ele degradantes, como a que ocorre na cena da praia com os amigos, para querer sair dessa. Mas, ele só poderá reconhecer-se se tiver a oportunidade de se contrapor a esse gozo com a morte. É lamentável que essa expectativa positiva frente a vida fosse precocemente abortada pela atitude severa e absurda daquela internação, mas apenas denunciar a repressão jamais teve o "dom" de suprimir o efeito maníaco degradante desse "apetite" (da morte) pelas drogas.
Assim sendo, tratar o usuário de drogas, hoje em dia, requer enlaces sociais com a droga como "sintoma" de degradação e, no nível singular de consultório, é preciso se dar conta de sua auto-exclusão familiar e social, conseqüências desse gozo com situações que conduzam à morte e não à vida. É desse gozo que ele precisa abrir mão, senão ele não usaria drogas. A abordagem psicanalítica privilegia a escuta, o ato que põe limite ao Princípio do Prazer, que não é a severidade nem a repressão, e sim fazer com que, dentro do possível, o dependente de drogas se inclua ali onde ele se excluiu, na família, na escola, na sociedade, para que ele possa simbolizar esse gozo com a morte encontrando um outro significado para sua vida que não a morte, ou seja, deve fazer com que, ainda que artificialmente, algo sintomatize a exclusão que advém deste Real; esta é a função do Desejo do Psicanalista ou o sintoma não é "a manifestação do Real no nível dos seres vivos"?
A nível extensivo, para além do consultório, uma excelente tese de mestrado em Psicologia Social da UERJ demonstrou que as campanhas educativas de combate a AIDS e drogas tem a eficácia restrita porque não se trata só de uma questão de conscientização. Elas não levam em conta esse gozo para com a morte que muitos aidéticos e dependentes de drogas procuram, principalmente pela via das drogas injetáveis. Daí a dificuldade da prevenção e erradicação da doença, principalmente nas "classes ditas intelectualmente favorecidas". Então, também a nível comunitário, mais do que simplesmente combater a adesão às drogas, o que deveria acontecer são projetos de inclusão dos adolescentes, como: ensino profissionalizante, atividades desportivas e culturais tais como dança, teatro, música entre outras, que apresentem uma desejante possibilidade de valorização pessoal, inclusão social e de integração à vida, uma valorização narcísica constante, senão para por um fim, pelo menos isso possa ter a força de evitar a adesão às drogas e de minorar o acesso à criminalidade. Quem se gosta não usa drogas, e, utilizando o raciocínio de Lacan que diz: o psicótico "ama o delírio como a si mesmo", poderíamos dizer que o dependente de drogas "ama o gozo com a morte como a si mesmo", quando todo o dependente deveria poder "amar um sintoma como a si mesmo".
Desta forma, para concluir, cito o Ziraldo em cartazes ("outdoors") no Rio de Janeiro: "A Droga é uma merda!"

SANDRA BECK DA SILVA ETGES, é membro analista do Centro de Estudos Lacaneanos -CEL-RS, Instituição Psicanalítica do Rio Grande do Sul.
Notas:
1 - Esse texto foi produzido a partir de um convite da Associação dos Amigos do Cinema de Santa Cruz do Sul - RS, para participar de um debate sobre este filme que fora exibido na cidade simultaneamente à campanha de combate às drogas, "100% Vida", promovida pelas Associações de Pais e Mestres das escolas locais, em novembro de 2001.
2- O nome "Neto" é como o personagem é chamado. Ora, "Neto" não é nome próprio, designa a ancestralidade do avô. É, como tal, um significante secundário que deveria ser acrescentado ao nome próprio que, ali, é omitido. Logo, esta não-nomeação designa o personagem. Não seria grave se ali não estivessem evidentes os traços foraclusivos provenientes da severidade paterna que é, aliás, denunciada como repressiva no próprio filme, fazendo do personagem um "Neto" sem avô. Em suma, ali se fez uma metáfora da foraclusão até na maneira de designar o personagem.

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