domingo, 6 de fevereiro de 2011

Breve percurso pelo pensamento freudiano acerca do tratamento psicanalítico das psicoses

por
Marcos Esnal
Psicanalista; Auxiliar de docência na Facultad de Psicologia da Universidad Nacional de Rosario.  

O dia 21 de novembro de 1906, numa intervenção na Sociedade Psicanalítica de Viena, Sigmund Freud estabelecia o que ia se constituir no elemento central de sua posição a respeito do tratamento psicanalítico das psicoses, ao se referir, na ocasião, à paranóia: "Isto [a mobilidade da libido] não é possível na paranóia por causa da regressão ao auto-erotismo. O médico não encontra fé, não encontra amor. O paciente, da mesma maneira que uma criança, só acredita em quem ama" (Nunberg y Federn, 1979, p. 82). Esta afirmação é posterior ao fato de ter proposto, anos antes, a localização da paranóia no grupo das "neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894), e estabelecido para ela o tratamento pela hipnose (método que a equiparava à histeria e à neurose obsessiva). A posição freudiana tinha mudado devido à não descoberta, nos paranoicos, da parte flutuante de libido que estabelecia as transferências (em 1906, ainda no plural) do paciente para com o analista.

Como é sabido, esta posição de Freud não mudou no decorrer de sua obra, à exceção de seu trabalho sobre A Gradiva de W. Jensen (1903), no qual, o modelo de interpretação do sonho o leva a propor uma simetria entre a posição de Zoe Bertgang a respeito de Norbert Hanold. Neste artigo, o delírio aparece como o modelo patológico da produção onírica, o que quer dizer que pode ser interpretado restabelecendo a relação do delirante com a realidade.3

Uma vez que, em 1912, Freud passa a utilizar no singular "a transferência", a inexistência da transferência nas psicoses torna-se para ele ainda mais patente. Esse fenômeno -o de que o paciente implicara ao analista na série parental de seus afetos e reminiscências-, perante o qual Freud se mostrava absolutamente surpreso por tratar-se de um acontecimento inesperado, não era presumível em quem amava seu delírio como a si mesmo. É a época do encontro de Freud com as Memórias de Schreber (Freud, 1911). A partir deste encontro torna-se possível (e necessário) introduzir o conceito de narcisismo, para poder explicar qual é o destino psicótico dessa libido flutuante presente nas neuroses: digamos que, para Freud, o delírio condensa aquela energia que está destinada ao analista como objeto no marco de uma psicanálise.

Em 1915, Freud publica os Trabalhos sobre Metapsicologia. Neles, ao referir-se ao destino das cargas de objeto ou libido objetal na esquizofrenia, ele explica que: "... o estudo da esquizofrenia nos impôs a hipótese de que, após o processo repressivo, a libido subtraída não procura nenhum novo objeto, mas que se retrai ao Eu, ficando assim suprimida a carga de objeto e reconstituído um primitivo estado narcisista, carente de objeto. A incapacidade de transferência destes pacientes, dentro da esfera de ação do processo patológico, sua conseqüente inacessibilidade terapêutica, sua singular repulsa ao mundo exterior, o surgimento de indícios de uma sobrecarga do próprio Eu e, enfim, a mais completa apatia, todos estes caracteres clínicos parecem corresponder à maravilha à nossa hipótese da cessação da carga de objeto. No que diz respeito à relação com os dois sistemas psíquicos, todos os investigadores comprovaram que muitos daqueles elementos que, nas neuroses de transferência, somos obrigados a buscar no inconsciente, através da psicanálise são conscientemente exteriorizados na esquizofrenia. Mas, no começo, não foi possível estabelecer, entre a relação do Eu com o objeto e as relações da consciência, uma conexão inteligível." (Freud, 1915, p. 194)

Na série de conferências de introdução à psicanálise aparecidas em 1917, Freud dedica uma à teoria da libido e o narcisismo e uma outra à transferência. Nelas refere-se à resistência oposta pelos psicóticos ao tratamento como "um muro que nos detêm" (Freud, 1917, p. 385) e resolve as dificuldades de sua abordagem no fim da conferência dedicada a "A transferência", dizendo que "são inacessíveis ao nosso empenho; não podemos curá-los" (Freud, 1917, p. 407).

Notou-se já (Allouch, 1986) que, em 1924, a metáfora do muro continuava vigente: "Em particular, desde que se começou a trabalhar no conceito de narcisismo, conseguiu-se lançar um olhar por cima do muro, ora neste, ora nestoutro lugar" (Freud, 1924, p. 57).

Em 1937, Freud extrai conclusões interessantes da comparação entre o delírio e as construções do analista no marco do tratamento das neuroses: "Muito amiúde, quando um estado de angústia faz [o neurótico] prever que algo terrível acontecerá, simplesmente está sob o influxo de uma lembrança reprimida que gostaria de acudir à consciência e não pode devir consciente: a lembrança de que aconteceu efetivamente algo terrível naquele tempo. Opino que tais empenhos com psicóticos terão de nos ensinar muito e coisas de grande valia, embora o sucesso terapêutico seja denegado a eles" (Freud, 1937, p. 269).

Se revisarmos um pouco este breve percurso, poderemos assinalar a gestação de diferentes conceitos muito caros à psicanálise e, ao mesmo tempo, ver como essa gestação seria impensável sem uma preocupação, por parte de Freud, com pensar o que ocorria, em termos metapsicológicos, nas psicoses. Pensemos, por exemplo, no conceito de Superego. Se bem este conceito reconhece suas raízes nos chamados diques anímicos dos Três ensaios de teoria sexual (Freud, 1905) e sua formulação específica em O Ego e o Id (Freud, 1923), é claro que a análise das idéias de perseguição que padece o psicótico -e das que Freud se ocupa em Introdução ao narcisismo (Freud, 1914)- representa um degrau fundamental na construção do referido conceito. É possível também pensar o quanto deve a teorização de Freud às psicoses em relação a outros conceitos chave: a distinção entre representação de coisa e de palavra, o esclarecimento do processo de luto, a distinção entre projeção "normal" e patológica etc.

Em resumo, digamos que a posição de Freud, dentro de um modelo pulsional binário, que supõe uma passagem do auto-erotismo ao narcisismo e no qual o estabelecimento da transferência depende da existência de um mínimo de libido flutuante capaz de se enlaçar à imagem do analista, aparece como lógica.

Para finalizar, podemos passar em revista algumas perguntas que atualmente orientam nossa pesquisa:

Que acontece na psicanálise para que, a partir dos anos quarenta, comecem a surgir trabalhos como os de Federn (1991), que propõem não só a existência da transferência nas psicoses mas as modificações que necessariamente devem se realzar no dispositivo analítico para que tenha lugar uma cura?

Que relação têm os impasses surgidos nestes tratamentos com os do próprio Freud?

Por que existe, nos analistas de orientação lacaniana (em qualquer uma das vertentes atuais da mesma), uma convicção inabalável que afirma que somente a partir das proposições de Lacan começou a se tornar possível o tratamento psicanalítico das psicoses?

A convicção anterior responde ao efeito imaginário de uma doutrina e ao desconhecimento do acontecido na psicanálise durante os anos quarenta e cinquenta, ou existem razões teóricas que a sustentam?

Caso se deva à segunda alternativa proposta, essas razões teóricas são as mesmas?


Fonte:http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000032001000300026&script=sci_arttext







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