sábado, 26 de abril de 2008

NIETZSCHE por trás da máscara de DON JUAN DE MARCO

Cinema imaginário

Simone Koff Barbosa*


Através da estória de Don Juan de Marco,estabeleceremos um duelo entre o mundo das idéias de Platão e a complexidade do universo de Nietzsche, adotando como ponto de partida a análise de alguns aforismas da obra de Nietzsche ¹.
Na primeira parte da obra, mais especificamente no capítulo ‘Dos Preconceitos dos Filósofos’, Nietzsche questiona os valores e suas origens, além de criticar os filósofos que crêem em determinados valores pré-concebidos como verdadeiros e absolutos, o que para ele pode soar perigoso. Para Nietzsche, o filósofo deve saber ousar, renunciando valores habituais e não aceitando de forma pacífica estes valores:
A necessidade de saber a verdade ainda há de nos arrastar para muitas aventuras, essa célebre veracidade de que todos os filósofos falam até os dias de hoje com veneração. Afinal, quem vem aqui enterrogar-nos? Qual de nós mesmos tende para verdade? Por que haveríamos de preferir a não verdade? Talvez, a inceteza? Quem sabe, a ignorância?... Pode algo nascer do seu contrário? Por exemplo, a verdade do erro? A ação altruísta do egoísmo? A crença nas oposições de valores é a fé fundamental dos metafísicos.²
Se analisarmos estes aforismas e relacionarmos com o personagem do filme Don Juan de Marco, podemos dizer que o personagem vive no mundo metafísico, que é ilusório, passional e baseado nas oposições de valores. Podemos dizer ao mesmo tempo que Don Juan é um personagem ousado, pois criou seu próprio mundo, um mundo imaginário que não faz parte dos valores habituais.
A verdade do personagem é completamente ilusória, provavelmente para ocultar problemas do
passado e fugir para um mundo, que mesmo ‘irreal’, trazia a possibilidade de alcançar a suposta
felicidade’. Por outro lado, sob os olhos de Nietzsche essa ousadia seria no mínimo contraditória e Don Juan provavelmente seria um covarde, pois para o filósofo não existem os valores de bem e mal, de felicidade e infelicidade, já que estes eram preconceitos típicos dos metafísicos como Platão, que acreditavam num mundo efêmero, enganador e ilusório. O pensamento platônico, que era um pensamento aristocrático, residia principalmente na resistência ao sensualismo”.³
Para o filósofo, não deveria haver o ‘pré-conceito’ contra o sensualiasmo, pois o sexo também era
fundamental para conservação da espécie. No filme, o sensualismo é mostrado em diversas cenas através do mundo fantasioso, criado pelo personagem. Logo no começo do filme, o sexo é mostrado como pecaminoso, através da descrição da cena do personagem Don Juan, católico fervoroso que aos 10 anos de idade observava escondido sua professora trocando de roupa. Para Nietzsche o ‘pecado’ soa como algo igualmente mascarado e falso, já que é um valor pré-concebido, baseado em oposições como ‘céu x inferno’, ‘o bom x o pecador’, todas crenças metafísicas.
A questão do livre-arbítrio é abordada da seguinte forma:
É essencialmente afeto de superioridade em relação àquele que se deve obedecer. Eu sou livre, ele deve obedecer. Livre–arbítrio é essa expressão própria daquele que quer e comanda, que goza enquanto tal triunfo obtido sobre os obstáculos, mas que imagina que a vontade é quem no fundo triunfa dos obstáculos.4
Sob este prisma, podemos dizer que para Nietzsche não existe a idéia de total livre-arbítrio a
partir do momento em que existe relação de dominação. Por sua vez, o rebelde Don Juan não
quer admitir esta relação de dominação e prefere continuar vivendo no mundo ilusório e irreal. No filme, o personagem percebe que a única maneira de conquistar a suposta liberdade desta instituição é contando uma estória banal de que ele não passa de uma pessoa carente que estava passando por um momento de desespero. Aqui também existea idéia de manipulação do personagem que precisou ficar amigo do próprio psiquiatra para conseguir a suposta liberdade. Este fato vem a questionar até que ponto determinadas instituições têm o poder de decidir questões tão importantes na vida das pessoas.
Nos julgamentos, há sempre a figura de um culpado e de um injustiçado. Este fato estabelece um
confronto com as idéias de Nietzsche, já que as instituições assumem o papel de ‘Deus que decide’, o que para o filósofo é algo inaceitável. Em determinada cena do filme, Don Juan fala ao
psiquiatra Dr. Micker: “Somente através do meu mundo você consegue respirar. Você é um grande amante como eu, embora tenha perdido o caminho e o sotaque”. Neste caso, o psiquiatra começa a viver dentro do mundo imaginário do personagem, ou seja, ele precisava da fantasia do paciente para alcançar a própria felicidade. Sob este prisma, podemos dizer que houve uma inversão dos papéis. Aqui, como diria Nietzsche, talvez o psiquiatra do filme não tenha conseguido lutar contra as próprias resistências racionais e deixou que o seu coração comandasse a situação.
Complementando esta idéia: Por si só a juventude é algo que engana e
falseia. Autocastiga-se pela desconfiança para com seus próprios sentimentos, neste período de transição. Martiriza-se pelo entusiasmo e a dúvida. A consciência limpa até aparece já como perigo, auto-encobrimento e fadiga da honestidade mais pura.5
No contexto do filme, o psiquiatra parece ter que reviver uma juventude tardia e tenta resgatar a felicidade no seu casamento, ou seja, está em busca do tempo perdido, o que muito provavelmente para Nietzsche soaria como enganação. “A independência é algo para poucos - é prerrogativa dos fortes, não só forte, mas audacioso até a temeridade”.6
Para Nietzsche ficar a sós ou no isolamento pode significar crescer no próprio autoconflito.
Neste sentido, será que Don Juan não era um fraco? Sob os olhos de Nietzsche com certeza
era, já que ele vivia em um mundo idealizado e metafísico e não era capaz de vencer os obstáculos sozinho. Quanto mais abstrata for a verdade que pretendes ensinar, maior será a arte em seduzir os sentimentos a favor de tal verdade”.7
Don Juan era um grande mentiroso que acreditava tanto na própria mentira que suas estórias imaginárias passaram a ser uma verdade para ele. Nietzsche, ao contrário, nega este mundo idealizado e diz que em toda criação existe uma interpretação distorcida dos fatos que mascara a verdade. Ainda dentro desta analogia com o universo platônico há outro diálogo no filme que
aborda esta questão, no qual Don Juan reflete:
Para não enlouquecer tornei-me metafísico, considerei o significado da verdade, da existência, de Deus. Na vida existem quatro questões de valor: O que é sagrado? De que é feito o espírito? Por que vale a pena viver? Por que vale a pena morrer? A resposta é uma só: por amor.Ou seja, o personagem revela que o sentimento , a idealização, as crenças e principalmente o amor são as razões que justificam a vida e a existência.
Podemos analisar aqui Nietzsche sob outro ângulo, quando menciona: Aquilo que é feito por amor faz-se sempre para além do bem e do mal”.8
Acredito que Nietzsche aborda de uma maneira complexa e profunda a questão do ’bem‘ e do ‘mal’, pois de certa forma não considera estes valores que são opostos. Ao mesmo tempo, segundo ele, o amor ultrapassa as fronteiras de valores e talvez o que ele queira dizer é que este sentimento transcende a todo tipo de explicação lógica, ou seja, a tudo que possamos explicar ou entender, as pessoas apenas sentem. Se Nietzsche reconhece o amor e reconhece que ele ultrapassa todo e qualquer valor préconcebido, este sentimento também está inserido no contexto da fantasia, do sonho, do imaginário de cada um que consiste na metafísica platônica. Nietzsche, neste aforisma se aproxima muito do universo platônico, embora acredito que muito provavelmete, nunca iria admitir esta idéia. No contexto do filme podemos interpretar ainda que na medida em que o personagem se auto-supera, acreditando na própria mentira ele também se autodestrói, pois no filme ele fica perto de cometer o suicídio. Ainda podemos interpretar que quando as pessoas amam, muitas vezes não vêem os limites do bem e do mal, do certo e do errado e são capazes de fazer qualquer coisa para despertarem ou serem
despertadas por esse sentimento. O personagem de Dom Juan muito provavelmente era uma pessoa triste que não tinha encontrado o seu amor, entretanto era um eterno ‘sonhador’, alguém que queria muito ser amado e então encorporava a fantasia de ser um grande amante e um grande sedutor. Um dos aforismas mais interessantes e complexos reza que:
“Em última instância amam-se os nossos desejos e não o objeto desses desejos”.9
Talvez o que Nietzsche queira dizer é que as pessoas na verdade se auto-enganam, amam o sentimento da paixão que as faz sentir mais leves, românticas e poderosas por dominarem e sentirem-se dominadas, e que muitas vezes são capazes de amar mais esse desejo da suposta vaidade e felicidade do que da própria pessoa envolvida, o que deixa de ser um pensamento egoísta. O filósofo deixa nas entrelinhas que as pessoas se apaixonam pela ‘arte de seduzir’, sendo que o objeto do desejo pode ficar em segundo plano. A já mencionada máscara preta que Don Juan usava em torno dos olhos acredito que seja uma forma de auto-defesa na qual o personagem diz usar para defender a suposta ‘honra do pai’, como se ele não quisesse ser descoberto para não ter que enfrentar as dificuldades do mundo real. O personagem mostra ao psiquiatra o ‘mundo encantado’ da bondade, do amor ao próximo, o que não deixa de ser astuto, como diria Nietzsche, pois ele esconde todos os sentimentos de raiva, perdas afetivas, traição e baixa auto-estima.
Para o filósofo, os sentimentos de amor e ódio estão muito próximos, talvez porque a interpretação sobre as situações que vivemos sejam sempre distorcida e falsa porque não existe uma verdade absoluta. Neste sentido, estes valores de bem mal se aproximam, se confundem e até se manulam porque de certa maneira, para Nietzsche, perdem o sentido. Para o filósofo, talvez Don Juan ainda represente as figuras de Deus e do Diabo simultaneamente através de uma metafísica que acreditava e não acreditava ao mesmo tempo. “O perigo da felicidade: agora tudo está bem para mim, agora amo qualquer destino. Quem está disposto a ser meu destino?”.¹0
Este questionamento nos leva a refletir que o conceito da felicidade pode ser realmente utópico,
pois muitas pessoas pensam que seriam mais felizes se fosssem outras pessoas, ou se estivessem no lugar de outras e até mesmo se vivessem sob a máscara de um personagem como é o caso de Don Juan. Mesmo assim, não há garantias de que se trocássemos nossos destinos seríamos mais felizes. Para Nietzsche não há garantias sobre o futuro e muito menos a suposta receita da ‘felicidade’. Diante deste fato, quem gostaria de ter o destino de outra pessoa sabendo que ele está sujeito a mudanças completamente imprevisíveis? Talvez o que Nietzsche queira dizer é que devemos amar o nosso próprio destino no que depender da nossa própria vontade e capacidade, pois o futuro é incerto, sem respostas. Nietzsche se aproxima de Platão sob alguns aspectos, mas difere em outros. Podemos dizer que o filósofo descreve a profundidade na superfície porque para ele não existe separação entre corpo e alma, existe uma análise, há uma superação de bem e de mal, do verdadeiro e do falso. Nietzsche tinha idéias parecidas com Platão em relação à política, ambos defendem a política elitista que oprime o povo sofredor. Sob outro prisma, o cristianismo - moralista platônico vai contra o niilismo de Nietzsche.
Talvez Nietzsche tenha sido suficientemente astuto para desmascarar o idealismo platônico que, retirando sua última máscara pode-se dizer que Platão se considerava um Deus. Se retirarmos a última máscara de Nietzsche é possível que não haja uma única conclusão absoluta, mas através de seu olhos temos a oportunidade de pensar sobre a vida através de um perspectivismo eniquecedor, intrigante e desafiador. Nietzsche foi um filósofo revolucionário, que contribuiu muito para o questionamento do comportamento e da alma humana. Vivemos hoje no mundo do efêmero, do pós-moderno e da substituição. Nietzsche porém, permanece vivo e atual na cultura do ‘volúvel’ por ser suficientemente profundo diante da superficialidade do mundo em que vivemos.

NOTAS
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social/PUCRS. Publicitária com Especialização em
Design na School of Visual Arts SVA (Nova Iorque/ Estados
Unidos).
1 Nietzsche, F. Além do Bem e do Mal: Prelúdio para
uma filosofia do futuro. São Paulo. Cia. Das Letras. 1996.
2 Nietzsche. F. op. cit. § 1 e 2.
3 Nietzsche. F. op cit. § 14.
4 Nietzsche. F. op. cit. § 19.
5 Nietzsche. F. op. Cit. § 31.
6 Nietzsche. F. op. Cit. § 29.
7 Nietzsche. F. op. Cit § 129.
8 Nietzsche. F. op. Cit § 153.
9 Nietzsche. F. op. Cit § 175.
10 Nietzsche. F. op. Cit § 103.

REFERÊNCIAS: NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal – prelúdio para uma filosofia do futuro. São Paulo. Companhia das Letras. 1996.

2 comentários:

Anônimo disse...

KATIA,
parabéns pelo blog...

os textos estão muito interessantes.
[é com dois S??]

O.o
um abraço,
Teta.

Unknown disse...

eu adoro ler sobre Nietzsche...

mas ainda naum consigo compreender tudo q ele passa pra nós..

Mas um belo texto colocado

=)