quarta-feira, 7 de maio de 2008

Ilusão ou verdade

Confira o texto extra do Especial de Psicanálise e Filosofia: O caminho entre imagem simbólica e objeto despido de duplicidade aglutinando questões sobre arte e estética da psicanálise

Por Gilson Iannini *

A primeira pergunta que precisa ser feita a fim de abordar o problema das relações entre psicanálise e estética é a seguinte. Com que direito, ou a que título, ou ainda com que credenciais a psicanálise se investe da tarefa de emitir juízos sobre a arte e sobre os artistas? Esta primeira pergunta imediatamente se desdobra em outras. Até que ponto uma teoria do inconsciente psíquico está em condições de extrapolar seu campo primeiro de aplicação e se enveredar pelos teatros, museus, salas de concerto, bienais etc? Sendo uma disciplina eminentemente clínica, não corremos o risco de transformar a psicanálise numa visão de mundo, num sistema totalizante capaz de decifrar o sentido de tudo o que se apresente diante do olhar suspeito e da escuta atenta do psicanalista? Para dizer com todas as letras: há uma estética da psicanálise?
São bem conhecidas as incursões de Freud nos diversos domínios da arte, desde o teatro e a literatura até as artes plásticas. Comecemos por seu interesse pela tragédia clássica grega. Um conceito como o de "complexo de Édipo", que qualquer pessoa medianamente informada sabe mais ou menos o que quer dizer, é o resultado mais evidente da aproximação entre a psicanálise e o teatro grego. Mas o resultado destas incursões, à primeira vista, repercute muito mais vivamente no campo da ética do que na estética. Trata-se muito mais de fornecer coordenadas acerca da relação do desejo às normas éticas, do que de analisar a tragédia de Édipo sobre o prisma dos efeitos poéticos que ela ocasiona.
Evidentemente, um leitor da "Poética" de Aristóteles, poderia exclamar em alto e bom tom que os efeitos trágicos da peça não são desvinculados de seus recursos estético-formais. Por exemplo, a correta condução dos acontecimentos de acordo com certas leis poéticas é condição necessária para gerar terror e piedade no espectador e, conseqüentemente, atingir o efeito catártico almejado. Mas não são estas as preocupações primárias de Freud. Ele está interessado muito mais em descrever uma certa dinâmica da economia libidinal e psíquica que determina as relações triangulares com que a criança se depara, quando se trata de constituir-se como sujeito de desejo frente a estas primeiras figuras da alteridade, que são a mãe e o pai.
Tudo indica que não é aqui que encontraremos, pois, uma maneira de falar das relações entre psicanálise e estética. Para tanto, será preciso esperar a contribuição específica de Lacan, psicanalista francês que é responsável pela maior renovação da psicanálise freudiana (inclusive em termos de sua propagação entre nós). Ao abordar a ética da psicanálise em 1959-1960, o psicanalista francês vai colocar em relevo a dimensão estética da tragédia.
O mesmo se passa no terreno da literatura de língua alemã, onde Freud privilegia Schiller, Goethe e Heine, como interlocutores de maior monta. Em muitos momentos, trechos destes autores ilustram conceitos e/ou arejam a argumentação às vezes demasiado árida. Mas, sobretudo, cumprem a importante função de fornecer um ponto de apoio quando as longas cadeias de raciocínio parecem se esgotar diante de impasses teóricos e conceituais. Só isso já seria suficiente para demonstrar a importância prática que Freud conferia à arte. Em Freud e seu duplo, Moritz Kon caracteriza Freud como "doctor-poeta" (Kon, 1996, p.201). Ao confessar que seu "herói secreto" é Goethe, o próprio Freud, em carta a Giovanni Papini, fornece mais elementos para esta interpretação, ao dizer ter realizado seu sonho secreto de "permanecer um homem de letras sob as aparências de um médico".
Além disso, temos, finalmente, as conhecidas incursões de Freud na psicologia de alguns artistas proeminentes, como Leonardo e Michelangelo; como Goethe, Jensen e Dostoiévsky. Em geral, estes textos procuram desvendar mecanismos psíquicos e pulsionais subjacentes à criação artística. Sua "disposição racionalista e analítica" parece se interpor como uma espécie de anteparo entre ele e a obra em questão, fazendo ressaltar, em primeiro lugar, uma análise que privilegia o conteúdo das obras, muito mais do que aspectos formais ou mesmo materiais. Pelo menos foi assim que Gombrich o interpretou em seu trabalho "As teorias estéticas de Freud". E foi assim que apontou os limites da abordagem freudiana das obras de arte.
Talvez esta perspectiva esteja de algum modo relacionada ao diagnóstico freudiano, tantas vezes reiterado, de que "arte é ilusão". Isto significa que, pelo menos num primeiro plano, ele negava à arte qualquer valor cognitivo ou relação com a verdade. Em um texto intitulado justamente "A questão de uma visão de mundo", ele afirma que, num certo sentido, a arte está bem próxima da religião. A arte é ilusão, diria, mas tudo bem, pelo menos não pretende nada mais do que isso. Pelo menos, a arte, ao contrário da religião, não pretende erigir nenhum sistema de valores para orientação da conduta nem impor crenças em supostas verdades às pessoas. Neste sentido, a visão da arte como expressão da subjetividade desprovida de valor cognitivo parece colocar Freud na perspectiva de um certo romantismo estético.
Mas, ao mesmo tempo, sua visão do futuro das ilusões religiosas e artísticas é amplamente devedora de uma certa filosofia da história de cunho fortemente iluminista, para os mais condescendentes, positivista, para os mais críticos. Aqui, temos uma concepção segundo a qual apenas a ciência tem credenciais para produzir conhecimento qualificado e para justificar verdades, na exata medida em que se submete ao crivo da realidade. Mais do que isso, temos aqui uma vontade nada escondida de que as ilusões, principalmente aquelas produzidas pela religião, sejam deixadas para trás quando a marcha da razão triunfar.
Embora suave, a voz da razão nunca se cala, diz Freud. Por isso, ele se engaja ativamente no que parece um combate que precisa ser travado pela ciência em nome da verdade. Ao investigar as origens psicológicas do sentimento religioso e mostrar assim o caráter ilusório de suas crenças, é um trabalho crítico desta natureza que está em jogo. No entanto, ao contrário da crítica impiedosa que desferra contra a religião, Freud "salva" a arte desta necessidade impiedosa de crítica, porque a ilusão que ela engendra seria inócua para os seres humanos. O resultado paradoxal desta perspectiva é o seguinte. Ao salvar a arte, Freud é obrigado a retirar-lhe toda relação com a verdade e toda dimensão cognitiva. A arte provoca uma certa narcose, mas num grau leve, e, portanto, inócuo.
Seja como for, esta posição ambígua reservada à arte - uma ilusão, mas uma ilusão inócua -, faculta a Freud uma peculiar posição diante dos artistas e das obras que ele pretende analisar. Longe de tentar desmistificar a ilusão produzida por determinadas obras, na qualidade de um juiz ou algo do gênero, Freud se exime de emitir julgamentos estéticos sobre as obras que ele analisa. É na qualidade de um cientista dos processos psíquicos que Freud se interessou pelos mecanismos psíquicos envolvidos na produção de alguns artistas. Por que razões?
Em 1913, na página dedicada ao Interesse da psicanálise do ponto de vista da ciência da estética, afirmava que os conflitos que impulsionam as pessoas à neurose não são muito diferentes daqueles que servem como forças motrizes da criação artística. Mas logo em seguida adverte: "de onde o artista retira sua capacidade criadora não constitui questão para a psicologia" (Freud, 1987 [1913], p. 222). Como mostramos em outra ocasião (ver nosso O tempo, o objeto e o avesso, Ed. Autêntica), Freud desenha aqui um limite para sua abordagem de problemas estéticos. Seu interesse não é o de fazer uma "psicologia da criação artística", ou algo do gênero. Trata-se, muito mais, do seguinte.
Ao estudar as soluções que determinados sujeitos dão aos seus conflitos psíquicos pela via da sublimação, o que interessa quando se trata de sujeitos artistas, é justamente o que faz com que determinados objetos estéticos se prestem melhor a estas soluções. É por isso que, se avançarmos além daquele primeiro nível de leitura aludido acima, François Regnault, um especialista em estética lacaniana, pode afirmar que Freud tenha conseguido evitar, pelo menos no essencial, a "reduzir a arte a uma economia dos afetos" (Regnault, 2001, p. 83). Todo este percurso desemboca na construção de um conceito-chave não apenas para a teoria psicanalítica, mas também para a clínica: o conceito de sublimação.
Grosso modo, a sublimação é um dos quatro destinos possíveis da pulsão, ao lado da reversão ao seu oposto, do retorno em direção ao eu e do recalcamento. Nem perversão, nem recalque: eis o espaço tênue em que a sublimação se vê encantoada. Sua principal característica seria a eleição de alvos dessexualizados para satisfação de moções originariamente sexuais. Ou seja, a satisfação é obtida através do desvio da pulsão para objetos culturais.
Mas este desvio ocorreria sem a participação do recalcamento e, portanto, este não implica uma formação substitutiva. Isto é, embora o objeto de satisfação seja não-sexual (um objeto culturalmente valorizado), a forma da satisfação e da produção de prazer conservaria o modelo de satisfação próprio à satisfação sexual, ao deixar quase intacta a excitação originária. Por isso, a enorme atratividade da arte e o fascínio exercido pelos artistas. (Para abordagens mais completas ver: Tania Rivera, "Ensaio sobre a sublimação", Revista discurso, n. 36, 2006) e Vladimir Safatle, "Estética do real: pulsão e sublimação na reflexão lacaniana sobre as arte", in: O tempo, o objeto e o avesso, Ed. Autêntica).
Freud nunca se interessou em escrever uma teoria geral e sistemática da arte ou coisa do gênero. A psicanálise freudiana não se interessa pela arte como forma. Talvez nem mesmo esteja em questão algo como uma estética da psicanálise. A arte só interessa a Freud no sentido em que determinadas formas de subjetivação que encontramos na clínica parecem ser distorções ou desfigurações de obras de arte. Numa passagem célebre de "Totem e tabu", de 1913, podemos ler que "as neuroses, por um lado, apresentam concordâncias marcantes e profundas com as grandes produções sociais da arte, da religião e da filosofia; por outro, aparecem como distorções destas".
Esquematicamente, temos o seguinte quadro. A arte é uma ilusão, não tem nenhuma relação com a verdade ou com o conhecimento, mas, em compensação, não pretende ter. Desse modo, a arte é uma ilusão, porém não é uma mentira; a religião também é ilusão, da mesma forma não possui nenhuma relação com a verdade ou com o conhecimento, mas se apresenta como verdade. Por esta razão, a religião é uma ilusão e uma mentira; finalmente, a ciência não é nem ilusão e nem mentira, porque é capaz de produzir conhecimento verdadeiro sobre a realidade material e abdicar do princípio do prazer, na medida em que se deixa corrigir pela realidade, e porque se limita apenas a isso, sem dar passos maiores do que as pernas.
É claro que este quadro apresentado por Freud poderia ser atacado por diversos lados. O próprio Lacan percebeu a necessidade de redesenhá-lo e o fez em suas lições sobre a criação e o vazio no seminário sobre a Ética da psicanálise. Mas o que está em jogo aqui não é isso. O que queremos é entender o argumento de Freud, que o conduz imediatamente a afirmar o seguinte: "poder-se-ia ousar dizer que uma histeria é figura distorcida de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, uma figura distorcida (Zerrbild) de uma religião, e uma mania paranóica, uma figura distorcida de um sistema filosófico" (FREUD, S. Totem und Tabu. G. W., Frankfurt am Main, Fischer Verlag, t. IX, 1999, p. 91).
O que Freud sublinha é exatamente o caráter a-social da neurose, o que fornece um contraponto perfeito à arte vista como produto social. Neste sentido, fica mais clara a oposição entre o recalcamento e a sublimação do ponto de vista dos modos de interação entre o sujeito e a cultura. Não se trata, pois, de uma teoria freudiana da arte, mas de como determinados modos de subjetivação podem ser pensados a partir da desfiguração (Verzerrungen) de um modelo emprestado das produções sociais. Lacan acrescentaria que o pano de fundo é sempre o modo como cada um destes três saberes lida com o vazio.
O vazio aqui é tomado como a impossibilidade de encontrar uma representação simbólica ou pictórica que dê conta da radical singularidade dos desejos inconscientes. Para entender por que o desejo é sem representação, basta pensar num indivíduo qualquer (um homem, uma mulher) que sonha obstinadamente em adquirir um determinado bem material (um carro, uma bolsa,etc) ou alcançar algum bem espiritual (um emprego, um namoro, etc) e que, tão logo consiga o que quer, já desloca todo seu interesse para outra coisa (uma namorada, um sapato; uma promoção, um casamento; para retomarmos a seqüência dos exemplos nada aleatórios dados acima). Esta experiência, tão corriqueira, demonstra que o sujeito nunca sabe exatamente o que quer quando quer alguma coisa.
Diante do vazio deixado pela impossibilidade de dar sentido à frustração do desejo, à falta de um objeto adequado à fantasia, três saídas se apresentam: a religião, a ciência e a arte (leia quadro Três vazios). Nesse contexto, Lacan introduz o problema do vazio como uma questão fundamental no tratamento da problemática da sublimação. Pensar a sublimação como um modo de satisfação libidinal caracterizado por uma "conciliação fácil entre o indivíduo e o coletivo" parece a Lacan uma verdadeira "cilada" (Lacan, 1988, p. 120). É esta a razão que o leva a denunciar o engodo de situar a sublimação na vertente do narcisismo. Pensar a sublimação segundo o modelo do narcisismo implica tomar o objeto como algo "perpetuamente intercambiável com o amor que o sujeito tem por sua própria imagem" (Lacan, 1988, p.124).
Por esta razão, a sublimação lacaniana não oferece ao sujeito um horizonte de reconciliação qualquer com o desejo cujo objeto lhe escapa. De fato, poetas, pintores, músicos, artistas em geral, não menos do que não-artistas, se matam, se auto-mutilam, se deixam devastar pelo gozo até a morte. O problema da sublimação vai apontar a diferença entre o objeto narcisicamente investido e a Coisa, este objeto que funciona como ponto limite à predicação (Lacan, 1988, p.124).
Mas o que é esta Coisa, grafada com letra capital? "Coisa" é o nome que serve para mostrar que o vazio proposto pela psicanálise não é um vazio místico nem metafísico. Em Freud, Coisa é o conceito que marca a impossibilidade radical de o sujeito encontrar o objeto contingente que em suas primeiras experiências de satisfação pôs fim a um estado de urgência. Em Lacan, Coisa designa a impossibilidade de uma resposta adequada à pergunta sobre o desejo do sujeito. Em nenhum dos dois casos, o vazio preexiste às experiências efetivamente vividas pelos sujeitos: o vazio não está na origem.
O vazio é, antes, um efeito. Um efeito da "presença de uma ausência". Mas o que é esta tal "presença de uma ausência" senão mais uma mistificação, uma contradição ou um mero jogo de palavras? Um ou dois exemplos podem ser úteis. Pense numa parede branca cravada de ponta a ponta com quadros dispostos numa série simétrica. Agora retire um quadro qualquer da série. O que você verá? A falta que o quadro retirado faz. Em outros termos, a presença de uma ausência. Outro exemplo: pense na paisagem de Nova York depois do 11 de setembro. Depois daquela ensolarada manhã de quase outono, será impossível não ver o invisível. A ausência das torres gêmeas é "vista" por todos. O problema que se coloca é, então, o que será possível criar no entorno, ou a partir deste vazio?
Assim, a estética da psicanálise, ou mais precisamente, o domínio de reflexões inspiradas no dispositivo conceitual da psicanálise que se volta para questões relativas à arte, não é uma aplicação da psicanálise à arte, mas, ao contrário, uma aplicação da arte à psicanálise (Regnault, 2001, p.20). Não se trata de submeter à interpretação analítica a obra ou o artista, colocando a arte no lugar de objeto ou o artista no divã, ainda que muitas vezes psicanalistas tenham se enveredado por esses becos. Trata-se, ao contrário, de recolher, no campo freudiano, os efeitos de verdade ocasionados pela simples existência de determinadas obras. Mas talvez fosse o caso de superar a lógica instrumental contida na fórmula "x aplicado a y", como nos alerta Célio Garcia com a idéia de interface e de "psicanálise implicada", e tentar uma modalidade de relação entre os campos que possa ser colocada sob a égide do que Badiou chamou de uma co-responsabilidade.
Uma estética à lacaniana seria uma estética que se pergunta por que certos objetos se prestam melhor a essa inadequação com a ordem simbólica. A arte, principalmente certa vertente da arte contemporânea, seria então figura de um certo excesso de real - que desnuda a precariedade do simbólico - espécie de ruína, de catástrofe das imagens da reconciliação. O caminho que vai da imagem simbólica ao objeto retirado da imagem, isto é, ao objeto extraído de toda relação de duplicidade, caracterizaria, na visão deste autor, a arte do século XX. E neste sentido, "Lacan é contemporâneo desta arte do século XX, que se singulariza por enquadrar o objeto como singularidade absoluta, sem duplo e sem imagem" (Wajcman, 2000, p. 46). Nisso residiria a co-responsabilidade entre a arte e a psicanálise.

*Gilson Iannini é professor do Departamento de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), editor da revista Artefilosofia, mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em psicanálise pela Université Paris VIII, e doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo
FONTE: http://www.portalcienciaevida.com.br/ESFI/edicoes/0/Artigo74764-1.asp

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