quinta-feira, 1 de maio de 2008

No Divã... "Casa tomada, e recuperada..."

Tempo atrás, meu querido amigo Mauro Brezolin teimou em lançar uma publicação de distribuição gratuita na cidade: Floripa Total. Nela, enquanto durou essa linda experiência, mantive uma coluna que se chamava “No divã...”; tentava nela apresentar diferentes questões sob a ótica de um psicanalista. Houve quem viu nela algum mérito. Vai aqui, a modo de colaboração, uma reedição de uma das colunas.

Para um psicanalista, com os anos de prática clínica fica cada vez mais claro aquilo que, no início da carreira, aprendemos nos textos. Os livros de Psicanálise, a própria história da disciplina, afirmam que a melhor fonte de ensinamento sobre o Inconsciente e a Sexualidade virá dos relatos dos pacientes e da forma em que possamos recuperar, no trabalho conjunto, esse “saber insabido” singular a cada sujeito que é, ao mesmo tempo, e de forma paradoxal, também universal.
Vou me deter em parte do relato de um paciente, o chamarei de José, que um tempo atrás, no momento crucial do que conveniamos ser seu fim de análise, me relatava como percebia e sentia seu percurso ao longo de todos esses anos de trabalho juntos na sua análise. Ele gostava de fazer uma analogia que em princípio pode parecer um lugar comum, más que com seu desenvolvimento ia além, mesmo, duma comparação para se tornar um espaço de descoberta sobre si mesmo; comparava sua vida, ou mesmo seu psiquismo com uma casa: um lugar onde habitar. E a metáfora já se mostrava interessante porque uma de suas queixas, no início do trabalho, era de que sua existência se restringia a uma vida interior com poucos ou nenhuns laços com o que, naquele momento chamava de exterior a si, da realidade; afirmando que “seu” mundo era pobre e desabitado.
Sempre insisti freudianamente, e já desenvolvi esse tema em vários artigos e conferências, que o texto literário - romance, poesia, ensaios - é uma fonte inesgotável de saber para a psicanálise. Nessa trilha, o magnífico relato de Julio Cortazar “Casa Tomada” foi um encontro decisivo para este paciente que encontrou nele as possibilidades de significar parte de sua história e, inclusive, começar um trabalho de análise. Cortazar inicia o relato deste conto em primeira pessoa dizendo: “Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.”; e embora José nunca tenha vivido numa casa real deste tipo, fazia dessa imagem sua própria memória afetiva. O inquietante do relato e que tanto o afetou e significou, pela luz que lançava na percepção de sua vida interior, era de que na narrativa, e estranhamente de forma natural, é que os dois irmãos, personagens que habitavam a casa, escutavam ou pressentiam a “presença” de invasores e que trancando as portas de acesso aos cômodos, supostamente ocupados por estranhos, invasores, se sentiram mais seguros...aos poucos foram recuando, recuando...
Ou por não ter mais portas que fechar, ou pela consciência das portas já fechadas José sentiu a necessidade de, como ele mesmo lembrou que disse nas primeiras sessões, “colocar a casa em ordem, reabrir portas trancadas”. O espaço da sua “casa”, já mínimo e fóbico nesse momento, parecia obscuro, desarrumado e sujo; sem possibilidades de receber outrem, nem sequer visitas esporádicas. Abrir janelas, ventilar, ver detrás de cada móvel significava não somente um grande esforço como também, e sobretudo, um grande risco. Medo de encontrar o que com tanto esforço tinha conseguido “esquecer”. Na verdade, parecia um trabalho além das forças com que contava no momento. Se, num primeiro momento, a angústia o encorajou a reaver sua casa interior, num segundo, já vislumbrando a magnitude e dificuldade da empresa, parecia atualizar a inibição que o havia levado a “perder terreno” na vida. Parecia necessário contar com outro espaço provisório no qual encontrar refugio, uma “base de operações” para, a partir dela, organizar a empreitada; não somente de retomada da propriedade quanto de re-construção. Meu querido amigo Ricardo Diaz Romero chamou a esta circunstância ou função, a partir de uma idéia de Descartes, de “Casinha Provisória”; aquilo que na psicanálise chamamos de Transferência: uma relação particular e única que se estabelece entre um paciente e seu analista, na qual se desenvolve o percurso de uma análise. Trata-se, fundamentalmente, de uma relação marcada pela confiança, primeiro nome que Freud deu à Transferência. Esse espaço inédito torna-se uma casa provisória, um ambiente familiar que propicia as incursões a essa outra moradia estranhamente familiar que, ao mesmo tempo, é tão própria e tão alheia; esse lugar íntimo que pode nos surpreender com sua extrangeiridade radical, habitada pelo desconhecido. Assim, uma análise significa poder contar com algo, - um espaço diferente do singularmente próprio - e com alguém - o analista.
No entanto, esta situação é provisória. Quiçá devamos dizer, artificial. Ela é construída, somente, para ser utilizada durante o tempo necessário para a construção de outro espaço. Seu caráter provisório deve ser claro. Muitos fantasmas de analisantes dizem respeito ao medo de dependência eterna e constante em relação a seus analistas. Seguindo a metáfora, poderíamos dizer que a dependência deve ser provisória e durar somente o tempo necessário; mesmo que depois alguns pacientes possam resistir por diferentes motivos, e em algum momento, a retornar as suas novas casas. Assim, podemos dizer que o fim de uma análise coincide com uma “mudança” onde levamos de um lugar para outro nossos novos-antigos pertences para re-começar uma vida em um lugar diferente, no mínimo, com mais espaço e disponibilidade para, como dizia Freud, amar e gozar da vida.

Rafael Villari, psicanalista

2 comentários:

Psicóloga Katia Mafra - CRP 12/12030 disse...

Bem interessante este texto...mergulhei fundo na história de José...sua metáfora, a transferência, A LITERATURA...
Parabéns Prof. Rafael! Uma pena que não tenha mais "no divã", em uma coluna,para saborearmos seus relatos de psicanalista, mas, segue o convite, para uma nova experiência: uma culuna, "NO DIVÃ" - BLOG DA PSI ESTÁCIO DE SÁ??? hein? que idéia!!!!
hehehe

Katia Mafra

rafael villari disse...

quem bom que gostaram! aos poucos, irei postando aquelas colunas já publicadas. algumas perderam a "atualidade", outras são mais gerais. semana próxima vai mais.

rafael