sexta-feira, 23 de maio de 2008

O mundo de Sofia

De Jostein Gaarder
Cia. das Letras, São Paulo, 1998
Tradução de João Azenha Jr

Capítulo 31 (Excerto)
Freud
(Páginas 458-473)

(…)
Alberto e Sofia ficaram parados à porta da cabana. Por fim, Alberto disse:
— É melhor entrarmos. Hoje vou contar a você sobre Freud e sua teoria do inconsciente.
Sentaram-se à janela. Sofia olhou para o relógio e disse:
— Já são duas e meia e eu ainda preciso providenciar algumas coisas para a festa.
— Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
— Ele foi um filósofo?
— Podemos chamá-lo de um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856 e estudou medicina na Universidade de Viena. Passou a maior parte de sua vida naquela cidade, justamente durante um período em que a vida cultural vienense experimentou uma fase de apogeu. Desde cedo, Freud se especializou num ramo da medicina que chamamos de neurologia. De fins do século XIX até quase meados do século XX, ele trabalhou na elaboração de sua psicologia profunda ou psicanálise.
— Explique melhor.
— Por psicanálise entende-se tanto a descrição da mente, da psique humana em geral, quanto um método de tratamento para distúrbios nervosos e psíquicos. Não pretendo fazer uma explanação detalhada sobre Freud e sua obra, mas é preciso conhecer um pouco de sua teoria do inconsciente, se quisermos entender o que é o ser humano.
— Você já conseguiu despertar meu interesse. Vamos lá!
— Freud achava que sempre havia uma tensão entre o homem e o seu meio. Para ser mais exato, uma tensão, ou um conflito, entre o próprio homem e aquilo que seu meio exigia dele. Não seria exagerado dizer que Freud descobriu o universo dos impulsos que regem a vida do homem. E isto faz dele um legítimo representante das correntes naturalistas
[i], tão importantes em fins do século XIX.
— O que se entende por “impulso” do homem?
— Nem sempre é a razão que governa nossas ações. Conseqüentemente, o homem não é apenas o ser racional tão defendido pelos racionalistas do século XVIII. Com freqüência, impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, nossos sonhos e nossas ações. Tais impulsos irracionais são capazes de trazer à luz instintos e necessidades que estão profundamente enraizados dentro de nós. Tão básico quanto a necessidade que um bebê tem de mamar seria, por exemplo, o impulso sexual do homem.
— Entendo.
— Talvez tudo isto não tivesse nada de novo em si. Mas Freud mostrou que essas necessidades básicas podiam vir à tona disfarçadas e tão modificadas que não seríamos capazes de reconhecer sua origem. Assim disfarçadas, elas governariam nossas ações, sem que tivéssemos consciência disso. Além disso, Freud mostrou que as crianças também têm uma espécie de sexualidade. A afirmação da existência de uma sexualidade infantil causou repulsa entre os refinados cidadãos de Viena e fez de Freud um homem extremamente impopular.
— Não me surpreende.
— Estamos falando de uma época na qual tudo o que tinha a ver com a sexualidade era tabu. Freud chegara à conclusão da existência de uma sexualidade infantil por meio de sua prática como psicoterapeuta. Ele tinha, portanto, uma sólida base empírica para fundamentar suas afirmações. Freud também constatou que muitas formas de distúrbios psíquicos eram devidas a conflitos ocorridos na infância. Aos poucos, então, Freud foi desenvolvendo um método de tratamento que podemos chamar de “arqueologia da alma”.
— O que você quer dizer com isso?
— O psicanalista pode “cavoucar” a mente do paciente, com a ajuda dele, é claro, a fim de trazer à luz as experiências e vivências que, em algum momento da vida passada, provocaram seu distúrbio psíquico. Para Freud, portanto, guardamos bem no fundo de nós todas as lembranças do passado.
— Agora estou entendendo.
— E pode ser que neste processo o terapeuta encontre uma experiência ruim que o paciente sempre tentou esquecer, mas que está bem viva e presente dentro dele e lhe rouba as forças. No momento em que tal “experiência traumática” é trazida ao consciente e o paciente tem a chance de encará-la de frente, por assim dizer, ele pode “se entender” com ela e se curar.
— Isto parece lógico.
— Mas estou avançando rápido demais. Vamos ver primeiro como Freud descreve a psique humana. Você já viu um recém-nascido?
— Tenho um primo de quatro anos.
— Quando vêm ao mundo, os bebês satisfazem suas necessidades físicas e psíquicas de forma bastante direta e desinibida. Se estão com fome, choram. E também choram quando estão com a fralda molhada ou quando querem deixar bem claro que querem um pouco de calor humano e contato físico. Freud chama de id este “princípio do prazer” que existe em nós. Quando somos recém-nascidos, quase todo o nosso ser é apenas um id.
— Prossiga.
— O id continua conosco na idade adulta e nos acompanha a vida toda. Só que aos poucos vamos aprendendo a controlar nossos desejos a fim de nos adaptarmos ao nosso meio. Em outras palavras, aprendemos a afinar nosso princípio de prazer com o princípio da realidade. Freud diz que construímos um ego e que este ego assume esta função reguladora. A partir de certa idade, embora tenhamos prazer em alguma coisa, não podemos simplesmente sentar e abrir o berreiro até que nossos desejos ou necessidades sejam satisfeitos.
— É claro que não.
— Mas pode acontecer de nós desejarmos intensamente alguma coisa que nosso meio não aceita. O que acontece é que muitas vezes reprimimos nossos desejos. Quer dizer, tentamos colocá-los de lado e esquecê-los.
— Entendo.
— Mas Freud aponta também uma terceira instância na psique humana: ainda crianças, somos confrontados com os padrões morais de nossos pais e de nosso meio. Quando fazemos alguma coisa de errado, nossos pais dizem “Não faça isto!”, ou então “Que vergonha!”. E mesmo depois de adultos podemos ouvir o eco de tais repreensões e julgamentos morais. As expectativas de nosso meio no plano da moral parecem ter se alojado dentro de nós e passado a constituir uma parte de nós mesmos. É isto que Freud chama de superego.
— Superego seria para ele sinônimo de consciência?
— Numa passagem, Freud chega a dizer textualmente que o superego se opõe ao ego como uma espécie de consciência. Na verdade, porém, trata-se do seguinte: o superego nos informa, por assim dizer, quando nossos desejos são “sujos” ou “impróprios”, e isto vale especialmente para os desejos eróticos ou sexuais. Como eu já disse, Freud constatou que tais desejos surgem bem cedo na infância.
— Me explique melhor, por favor.
— Hoje em dia sabemos e vemos que os bebês gostam de brincar com seus órgãos genitais. Podemos ver isto, por exemplo, quando vamos à praia ou à piscina. Na época de Freud, a criança de dois ou três anos que fizesse isto na frente dos outros ganhava um belo tapa na mão. Naquela época, era comum as crianças ouvirem frases tais como: “Que coisa mais feia!”, ou, “Não faça isso!”, ou ainda “Deixe as mãos para fora das cobertas!”.
— Revoltante…
— Dessa forma, as pessoas desenvolvem um sentimento de culpa. E como este sentimento de culpa é armazenado no superego, para muitas pessoas, e Freud acreditava que para a maioria delas, ele fica indissociavelmente atrelado a tudo o que diz respeito ao sexo. Ao mesmo tempo, Freud chamava a atenção para o fato de os desejos e necessidades sexuais serem uma parte natural e importante da natureza humana. E assim, minha cara Sofia, temos aqui todos os elementos de que necessitamos para um conflito entre prazer e culpa que pode nos acompanhar por toda a vida.
— Você não acha que esse conflito diminuiu um pouco desde a época de Freud?
— Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam este conflito de forma tão intensa que chegaram a desenvolver o que Freud chamou de neuroses. Uma de suas pacientes, por exemplo, apaixonou-se por seu cunhado. Quando sua irmã morreu ainda jovem, vítima de uma enfermidade, ela pensou junto ao leito de morte da irmã: “Agora ele está livre e pode se casar comigo!”. Este pensamento naturalmente entrou em conflito direto com o seu superego. Era um pensamento tão hediondo que ela o reprimiu, como Freud diz. Quer dizer, ela o enterrou no inconsciente. Depois, aquela jovem senhora ficou doente e passou a apresentar sérios sintomas de histeria. E quando Freud assumiu o tratamento dela, ficou claro que ela tinha se esquecido completamente da cena junto ao leito de morte de sua irmã e do desejo terrível, egoísta, que sentira vir à tona dentro de si. Durante o tratamento, a paciente voltou a se lembrar da cena, reviveu aquele momento que era a causa de sua enfermidade e ficou curada.
— Agora eu estou começando a entender o que você queria dizer com “arqueologia da alma”.
— Então vamos arriscar uma descrição bem genérica da psique humana. Após um longo período de experiência com pacientes, Freud chegou à conclusão de que a consciência humana era apenas uma pequena parte da psique. A consciência seria mais ou menos como a ponta de um iceberg que se eleva para além da superfície da água. Sob a superfície, ou sob o limiar da consciência, está o subconsciente, ou o inconsciente.
— Quer dizer que o inconsciente é tudo de que nós nos esquecemos, mas que continua dentro de nós?
— Não podemos ter presente em nossa consciência, o tempo todo, todas as experiências que vivemos. Mas tudo o que pensamos ou vivemos e tudo de que nos lembramos quando pomos a cabeça para funcionar Freud chama de “pré-consciente”. A expressão “inconsciente” significa, para Freud, tudo o que reprimimos. Quer dizer, tudo de que nós queremos nos esquecer a qualquer preço porque consideramos desagradável, indecoroso ou repulsivo. Quando temos desejos e prazeres que para nossa consciência, ou para nosso superego, são insuportáveis, nós simplesmente os enfiamos no porão do inconsciente e assim nos livramos deles.
— Entendo.
— Este mecanismo funciona em todas as pessoas sadias. Para algumas pessoas, porém, o ato de banir tais pensamentos desagradáveis ou proibidos é algo tão estressante que elas ficam doentes. É que aquilo que foi reprimido desta forma continua tentando emergir para o nível da consciência, de sorte que cada vez mais energia é despendida para se manter tais impulsos longe da crítica do consciente. Em 1909, quando Freud proferiu algumas palestras nos Estados Unidos sobre a psicanálise, ele ilustrou com um exemplo muito simples o funcionamento desse mecanismo de repressão.
— Que exemplo foi este?
— Ele pediu aos ouvintes que imaginassem que no auditório havia um indivíduo que perturbava a ordem e desconcentrava o orador rindo às gargalhadas, conversando com seus vizinhos e arrastando e batendo os pés no chão. Chegaria, então, um momento em que o orador não poderia continuar a falar. Nesse momento, alguns homens fortes provavelmente se levantariam e, depois de uma breve discussão, colocariam o elemento perturbador porta afora, no corredor. O indivíduo seria “reprimido”, portanto, e o orador poderia continuar com sua palestra. Mas para evitar que o elemento perturbador tentasse forçar sua entrada de novo no auditório, os mesmos homens que o tinham colocado para fora levariam suas cadeiras até a porta e funcionariam como uma espécie de resistência para garantir a repressão. Freud concluiu dizendo que se os ouvintes imaginassem o auditório como o “consciente” e o corredor como o “inconsciente”, teriam uma boa imagem de como funciona o processo de repressão.
— Também acho que a imagem é boa.
— Uma coisa é certa: o elemento perturbador vai querer entrar novamente na sala de conferências, Sofia. Em todo caso, é isto o que querem nossos pensamentos e impulsos reprimidos. Vivemos sob a constante pressão de pensamentos reprimidos, que tentam se libertar do inconsciente. Por isso é que muitas vezes dizemos e fazemos coisas que na verdade “não tínhamos a intenção de fazer”. Dessa forma, o inconsciente também pode guiar nossos sentimentos e ações.
— Você poderia me dar um exemplo?
— Freud descreve vários desses mecanismos. Um deles é o chamado ato falho, ou seja, algo que dizemos ou fazemos espontaneamente e que um dia tínhamos reprimido. Ele fala, por exemplo, de um empregado que foi escolhido para fazer um brinde ao seu chefe, de quem ninguém gostava.
— Sim?
— O empregado se levantou, ergueu o copo e disse: “Convido todos a arrotarem em homenagem a nosso chefe!”.
— Legal!
— Não foi o que o chefe achou. Ao dizer isto, o empregado simplesmente tinha expressado o que realmente achava de seu chefe. Talvez nunca tivesse ousado dizê-lo abertamente a ele. Você quer mais um exemplo?
— Sim.
— Certo dia, o bispo foi visitar a família de um pastor, que era pai de umas meninas adoráveis e muito comportadas. Este bispo tinha um nariz enorme, fora do comum. O pastor teve o cuidado, então, de pedir às suas filhas que não mencionassem nada a respeito do nariz do bispo. É que as crianças geralmente começam a rir quando percebem essas coisas, pois ainda não têm o mecanismo de repressão muito bem desenvolvido.
— E o que aconteceu?
— O bispo veio até a paróquia e as meninas, absolutamente deliciadas com a situação, faziam todo o esforço possível para não dizer nada a respeito do nariz. E mais: elas não podiam sequer ficar olhando para o nariz. Tinham de esquecê-lo completamente. Só que elas ficavam pensando no nariz do bispo o tempo todo. E quando chegou a hora de a menorzinha oferecer ao honorável bispo açúcar para o café, ela disse: “O senhor aceita um pouco de açúcar no nariz?”.
— Putz!
— Às vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos, e aos outros, que temos outros motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa maneira, simplesmente porque eles são constrangedores demais.
— Um exemplo, por favor.
— Posso hipnotizar você e induzi-la a abrir a janela. Para tanto, ordeno a você que se levante e abra a janela quando eu tamborilar com os dedos sobre a mesa, por exemplo. Quando eu faço isto, você se levanta e abre a janela. Depois pergunto a você por que você abriu a janela. Talvez você me responda que o fez porque estava muito quente aqui dentro. Mas este não é o verdadeiro motivo. Você não quer admitir para si mesma que obedeceu à minha ordem enquanto estava hipnotizada. E o que você faz? Você “racionaliza”, Sofia.
— Entendo.
— Coisas como esta acontecem quase todos os dias quando nos relacionamos com os outros.
— Eu já disse a você que tenho um priminho de quatro anos. Acho que ele não tem muitos amigos para brincar, pois ele sempre fica muito contente quando eu vou visitá-lo. Certa vez eu disse que precisava voltar logo para casa, pois minha mãe estava me esperando. E sabe o que ele me disse?
— Não.
— “Sua mãe é uma chata”, foi isto o que disse.
— Sim, este é um bom exemplo para o que entendemos por racionalizar. O menino realmente não quis dizer que sua mãe é uma chata. Ele quis dizer que achava chato que você tivesse de ir embora. Só que para ele não era muito fácil verbalizar isto. Outra coisa que pode acontecer é que nós projetamos.
— Traduza, por favor.
— Quando projetamos alguma coisa estamos transferindo a outros as características que tentamos reprimir em nós mesmos. Uma pessoa avarenta, por exemplo, gosta de ficar dizendo que os outros são avarentos. Alguém que não quer admitir que pensa muito em sexo geralmente é o primeiro a se irritar quando encontra outras pessoas fissuradas por sexo.
— Entendo.
— Freud dizia que nossa vida cotidiana está repleta de tais ações inconscientes. Muitas vezes nos esquecemos do nome de certa pessoa, ficamos mexendo numa pontinha de nossa roupa enquanto estamos falando ou então ficamos mudando de posição objetos aparentemente sem importância. Ou podemos tropeçar em nossas próprias palavras e acabar trocando letras e nomes, que à primeira vista podem parecer totalmente inocentes, mas que na verdade não são. Freud pelo menos não considera essas coisas tão inocentes e casuais como podemos achar. Ele acha que elas deveriam ser encaradas como sintomas. Para ele, esses atos falhos podem nos revelar segredos os mais íntimos.
— Daqui para frente, vou prestar bastante atenção em cada palavra que disser.
— Mesmo assim, você não poderá escapar de seus impulsos inconscientes. O segredo está em não se desgastar demais ao se empurrar as coisas desagradáveis para o subconsciente. É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você pode até conseguir, mas com certeza ela virá à superfície em algum outro ponto. O mais sadio é deixar só encostada a porta entre o consciente e o subconsciente.
— Se trancarmos a porta à chave podemos provocar distúrbios psíquicos em nós mesmos?
— Sim. Um neurótico é justamente alguém que despende energia demais na tentativa de banir de seu consciente tudo aquilo que o incomoda. Com freqüência trata-se de reprimir experiências bem específicas. São as chamadas “experiências traumáticas”, que eu já mencionei no início de nossa conversa, talvez um pouco cedo demais. Freud as chama de traumas. A palavra “trauma” é grega e significa “ferida”.
— Entendo.
— Em seus tratamentos, às vezes Freud tentava abrir cuidadosamente estas portas trancadas; outras vezes, procurava abrir outra porta. Com a colaboração do paciente, ele tentava trazer à tona novamente as experiências reprimidas. Isto porque o paciente não tem consciência de que as reprimiu. Não obstante, ele deseja que o médico, ou o analista, como se diz em psicanálise, o ajude a encontrar um caminho que o leve a seus traumas escondidos.
— E como o médico procede neste caso?
— Freud chamava este procedimento de técnica da livre associação. Isto significa que ele deixava o paciente deitado, bem relaxado, falando apenas sobre coisas que lhe viessem à cabeça, por mais irrelevantes, casuais, desagradáveis ou penosas que elas lhe fossem. Para o analista, as associações do paciente no divã trazem indícios de seus traumas e das resistências que impedem a conscientização. Pois são exatamente os traumas que ocupam os pacientes o tempo todo, só que não de forma consciente.
— Quer dizer que quanto mais a gente se esforça para esquecer uma coisa, mais a gente pensa inconscientemente nela?
— Exatamente. Por isso é importante prestar atenção aos sinais do inconsciente. Para Freud, o “caminho real” que leva para o inconsciente passa pelos sonhos. Por esta razão, uma de suas mais importantes obras é o livro A interpretação dos sonhos, publicado em 1900. Nele, Freud mostra que nossos sonhos não são meros acasos. Por meio dos sonhos, nossos pensamentos inconscientes tentam se comunicar com nosso consciente.
— Continue.
— Após longos anos de experiências acumuladas no trabalho com seus pacientes, e também depois de ter analisado os seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos são a realização de desejos. Ele dizia que podemos observar isto claramente nas crianças: elas sonham com sorvetes e cerejas, por exemplo. Em adultos, porém, acontece com freqüência de os desejos a serem satisfeitos no sonho aparecerem disfarçados. Isto acontece porque mesmo quando estamos dormindo uma censura severa continua a determinar o que podemos nos permitir ou não. Quando estamos dormindo, esta censura, ou mecanismo de repressão, é mais fraca do que quando acordados, mas ainda é forte o bastante para desfigurar no sonho os desejos que não queremos confessar nem a nós mesmos.
— E é por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
— Freud mostra que precisamos distinguir entre o sonho, tal como ele nos vem à lembrança na manhã seguinte, e o seu verdadeiro significado. As próprias imagens oníricas, quer dizer, o filme ou o vídeo a que assistimos quando sonhamos, ele as chamou de conteúdo manifesto do sonho. Mas o sonho também tem um significado mais profundo, que permanece inacessível ao consciente. E este significado, Freud o chamou de pensamentos latentes do sonho. As imagens oníricas e seus requisitos são geralmente tiradas do passado mais próximo, com freqüência dos acontecimentos que vivemos no dia anterior. Os pensamentos ocultos, porém, vêm de um passado mais remoto; por exemplo, das primeiras fases de nossa infância.
— Quer dizer que precisamos analisar o sonho para entender do que ele trata realmente.
— Sim. E os enfermos precisam fazer isto junto com um terapeuta. Mas não é o médico que interpreta os sonhos. Ele só pode fazer isto com a ajuda do paciente. O médico entra nessa situação apenas como uma parteira socrática que ajuda na interpretação.
— Entendo.
— O ato de reformular, de converter os “pensamentos latentes do sonho” em “conteúdo manifesto do sonho” é chamado por Freud de trabalhar o sonho. Podemos falar de um “mascaramento” ou de uma “codificação” da verdadeira ação que se desenrola no sonho. Na interpretação do sonho, temos de passar por um processo inverso. Temos de desmascarar ou decodificar o verdadeiro “motivo” do sonho, a fim de podermos descobrir o verdadeiro “tema” do sonho.
— Você poderia me dar um exemplo?
— Os livros de Freud estão cheios desses exemplos. Mas nós mesmos podemos inventar um exemplo bem simples e bem freudiano. Quando um rapaz sonha que sua prima lhe deu dois balões de ar…
— Sim?
— Não espere que eu continue. Você mesma deve tentar interpretar esse sonho agora.
— Hum… Neste caso, o “conteúdo manifesto do sonho” é exatamente isto que você disse: a prima dele lhe dá dois balões de ar.
— Continue.
— E você também disse que os requisitos de nossos sonhos geralmente são tirados das experiências vividas no dia anterior. Portanto, ele deve ter ido a um parque de diversões no dia anterior, ou então viu no jornal a foto de dois balões de ar.
— Sim, pode ser. Mas também pode ser que ele tenha apenas ouvido a palavra “balão” ou visto alguma coisa que o tenha feito lembrar de um balão.
— Mas o que são os “pensamentos latentes do sonho”? Eles não são aquilo de que o sonho realmente trata?
— Quem está interpretando sonhos aqui é você.
— Será que ele simplesmente não estaria querendo dois balões?
— Não, isto é pouco provável. Num ponto, porém, você tem razão: ele quer satisfazer um desejo no sonho. Só que dificilmente um rapaz adulto desejaria assim tão ardentemente dois balões de ar. E, se quisesse, não seria necessário sonhar com isso.
— Então… acho que na verdade ele deseja a sua prima. E os dois balões são os seios dela.
— Sim, esta é uma explicação provável, sobretudo porque este desejo lhe causa certo embaraço, de modo que ele não gosta de admiti-lo quando está acordado.
— Quer dizer que nossos sonhos dão umas voltas e passam por coisas como balões etc.?
— Sim. Freud considerava o sonho a realização disfarçada de desejos disfarçados. Pode ser que o que disfarçamos tenha se modificado consideravelmente desde que Freud conversava com seus pacientes em seu consultório em Viena. Apesar disso, é possível que o mecanismo de disfarce continue intacto.
— Entendo.
— Nos anos 20, a psicanálise de Freud se tornou muito importante, sobretudo no tratamento das neuroses. Além disso, sua teoria do inconsciente foi muito importante para a arte e a literatura.
— Você está querendo dizer que os artistas passaram a se ocupar mais da vida mental inconsciente do homem?
— Exatamente, embora isto já estivesse presente na literatura da última década do século XIX, quando a psicanálise de Freud ainda não era conhecida. Só estou querendo dizer que não é por acaso que a psicanálise de Freud surgiu exatamente nesta época.
— Você quer dizer que ela já estava embutida no espírito da época?
— Freud não acreditava ter descoberto, por assim dizer, fenômenos como a repressão, os atos falhos ou a racionalização. Mas ele foi o primeiro a trazer para dentro da psiquiatria tais experiências humanas. Ele também soube ilustrar muito bem sua teoria com exemplos extraídos da literatura. Mas, como eu disse, a psicanálise de Freud passou a influenciar diretamente a arte e a literatura a partir dos anos 20.
— De que forma?
— Escritores e pintores passaram a tentar aplicar as forças inconscientes em seus trabalhos de criação. E isto vale sobretudo para os chamados surrealistas.
— O que significa isto?
— A expressão “surrealismo” é francesa e significa algo como “aquilo que está além do realismo”. Em 1924, André Breton publicou seu Manifesto surrealista. Nele, Breton declara que a arte deveria ser criada a partir do inconsciente, pois só assim a inspiração do artista estaria livre para produzir suas imagens oníricas e o artista poderia buscar um “super-realismo”, no qual as barreiras entre sonho e realidade fossem abolidas. De fato, pode ser muito importante para um artista eliminar a censura do consciente, a fim de que palavras e imagens possam fluir livremente.
— Entendo.
— De certa forma, Freud tinha dado a prova de que todas as pessoas são artistas. Afinal, um sonho é uma pequena obra de arte e a cada noite criamos novos sonhos. Para interpretar os sonhos de seus pacientes, Freud freqüentemente tinha de abrir caminho através de um denso emaranhado de símbolos, mais ou menos como fazemos quando interpretamos um quadro ou um texto literário.
— E nós sonhamos todas as noites?
— Pesquisas recentes demonstraram que vinte por cento do tempo que passamos dormindo é preenchido por sonhos. Isto significa que sonhamos de duas a três horas por noite. Quando somos perturbados durante essas fases, reagimos com nervosismo e irritação. Isto significa nada mais e nada menos que todas as pessoas têm uma necessidade inata de dar à sua situação existencial uma expressão artística. O sonho trata de nós mesmos. Somos nós quem dirigimos este “filme”, juntamos tudo o que compõe os seus cenários e requisitos e desempenhamos todos os papéis. As pessoas que dizem que não entendem nada de arte são pessoas que se conhecem mal.
— Entendo.
— Além disso, Freud deu uma prova impressionante de como é fantástica a mente humana. Seu trabalho com pacientes convenceu-o de que guardamos no fundo de nossa mente tudo o que vimos e vivemos. E todas essas impressões podem ser trazidas à tona novamente. Todas as vezes que nos dá “um branco” e, pouco depois, ficamos com o que queremos lembrar “na ponta da língua”, e quando, um pouco mais tarde ainda, a coisa “subitamente nos ocorre”, estamos falando de algo que estava no inconsciente e, de repente, encontrou uma porta entreaberta e conseguiu escapar para o consciente.
— Mas às vezes isto demora muito.
— Sim, todos os artistas sabem disso. Só que de repente todas as portas e gavetas do arquivo parecem se abrir. Tudo flui espontaneamente e então podemos escolher exatamente as palavras e as imagens de que precisamos. Isto acontece quando deixamos a porta do inconsciente entreaberta. Podemos chamar isto de inspiração, Sofia. E então temos a sensação de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não veio de nós.
— Deve ser um sentimento maravilhoso.
— Mas com certeza você mesma já o experimentou. Podemos observar facilmente este estado inspirado em crianças que estão supercansadas. Neste estado, as crianças parecem mais acordadas do que nunca e começam a falar sem parar, tirando da memória palavras que elas ainda nem aprenderam. Só que é claro que elas já aprenderam. Acontece que essas palavras estavam “latentes” no seu consciente e só agora, quando o cansaço relaxa o policiamento e abole a censura, elas podem vir à tona. Para o artista, a situação é diferente. Mas também para ele pode ser importante que a razão e a reflexão não exerçam um controle tão rigoroso sobre aquilo que melhor pode se desenvolver espontânea, livre e inconscientemente. Posso contar uma fábula que ilustra muito bem o que estou dizendo?
— Claro!
— É uma fábula muito séria e muito triste.
— Pode começar.
— Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas cem perninhas. Quando ela dançava, os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava de assistir à dança da centopéia: uma tartaruga.
— Na certa porque tinha inveja.
— “Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?”, pensava ela. Ela não podia simplesmente dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois ninguém iria acreditar. Então ela começou a bolar um plano diabólico.
— Que plano era esse?
— A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: “Oh, incomparável centopéia! Sou uma devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna esquerda número 28 e depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e depois a perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a tartaruga”.
— Que coisa de doido!
— Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre o que fazia de fato quando dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha depois? E você sabe, Sofia, o que aconteceu?
— Acho que a centopéia nunca mais dançou.
— Foi isso mesmo. E é exatamente isto que pode acontecer quando o pensamento sufoca a imaginação.
— É triste mesmo esta história.
— Para um artista, portanto, pode ser muito importante “se deixar levar”. Os surrealistas tentavam se aproveitar disso e buscavam um estado em que tudo parecia brotar espontaneamente. Eles sentavam-se à frente de uma folha de papel em branco e começavam a escrever, sem pensar no que estavam escrevendo. Era isto o que chamavam de escrita automática. Na verdade, a expressão vem do espiritismo, em que um “médium” acredita que o espírito de alguém que já morreu está dirigindo sua mão ao escrever… Mas acho melhor continuarmos falando amanhã sobre essas coisas.
— Tudo bem.
— O artista surrealista também é, de certa maneira, um médium. Ele é um médium de seu próprio subconsciente. Contudo, é possível que haja uma pontinha de inconsciente em todo processo criativo. Pois o que seria isto que chamamos de “criatividade”?
— Ser criativo não significa criar algo de novo e de único?
— Mais ou menos. E isto ocorre por meio de uma delicada interação entre imaginação e razão. Na maioria das vezes, a razão sufoca a imaginação; e isto é ruim, pois sem imaginação não é possível produzir nada de novo. Eu vejo a imaginação como um sistema darwinista.
— Desculpe, mas esta eu não entendi.
— O darwinismo explica que a natureza produz um mutante atrás do outro. Mas a natureza só precisa de alguns poucos desses mutantes. Só alguns poucos têm a chance de viver.
— E então?
— O mesmo acontece quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas e novas idéias. Nesse caso, nossa cabeça produz um “pensamento mutante” atrás do outro. Quer dizer, isto se nós não nos impusermos uma censura muito severa. Acontece que só vamos usar realmente alguns desses pensamentos. E é aqui que entra a razão, pois ela também tem uma função importante. Quando temos sobre a mesa o resultado da pesca, não podemos esquecer de escolher os peixes.
— Esta é uma ótima comparação.
— Imagine se tudo o que nos “ocorre”, se cada lampejo de pensamento tivesse autorização para sair da nossa boca! Ou então para saltar do bloco de apontamentos ou sair das gavetas da escrivaninha! O mundo se afogaria bem depressa num mar de idéias e lembranças casuais. E não haveria uma “seleção”, Sofia.
— E a razão escolhe as melhores entre todas as idéias e lembranças?
— Sim, ou você não acha? A imaginação pode criar coisas novas, mas não é ela que realmente escolhe. Não é a imaginação que “compõe”. Uma composição, e toda obra de arte é uma composição, surge de uma admirável interação entre imaginação e razão, ou entre sentimentos e pensamentos. O processo artístico tem sempre um elemento de casualidade. Em certa fase pode ser importante não represar essas idéias e lembranças casuais. As ovelhas precisam ser soltas primeiro para só depois o pastor poder vigiá-las.
(…)
*Naturalismo: Corrente ou estilo literário e artístico que busca reproduzir os fatos observáveis sem pré-julgamentos morais ou estéticos. Surgido na França nas últimas décadas do século XIX. (©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.)
geovisit();

FONTE: http://br.geocities.com/mcrost08/o_mundo_de_sofia_31.htm


Um comentário:

Iara disse...

ta bom, eu li um pedação aki, mas eh mtuuu grande, não li tudo.
mas jah li esse livro...e acho ele SUPER legal.
recomendo pra td mundo q quiser ler.
bjos